Em pouco tempo, o filme com Brad Pitt, Tom Cruise e Antonio Banderas praticamente se consolidou como um clássico do gênero de filmes de vampiros. Dessa forma, é comum que uma série de mesmo nome (e história!) seja, à primeira vista, uma espécie de ameaça ao legado da Entrevista com o Vampiro.
Contudo, a narrativa nasceu, primeiramente, das mãos da escritora Anne Rice. Nesse sentido, a série de 2022 não propôs ser uma adaptação do filme para série, mas do livro para série, buscando ser mais “fiel” à história de Anne.
Obs.: este post terá spoilers!
Como a série contornou a narrativa do filme?
Ainda assim, a série é uma continuação do filme: o tempo se passa após a pandemia do Covid-19 e Louis chama Daniel, o jornalista já velho, para contar “a verdadeira história”. Para contornar as diferenças de enredo, ouvimos a gravação que Daniel fez quando era jovem, em São Francisco; em seguida, Louis se propõe a contar a verdade, até porque, de acordo com Daniel, sua história antiga estava com muitos furos.
E assim acompanhamos a narrativa que, diferentemente do filme, começa no início do século XX. Louis é um homem preto em Nova Orleans. Após a morte de seu pai, sua família quase vai à falência devido à crise da empresa de açúcar herdada por eles.
A saída de Louis é começar um negócio como cafetão. Assim, ele reúne muitas jovens e consegue fazer dinheiro. Apesar de ser bem-afortunado, Louis não é alheio ao racismo que sofre.
É nesse contexto que ele conhece Lestat, o vampiro como o conhecemos no filme de 1994: ele é aficionado por Louis e adora a vida de vampiro. Cativando a atenção de Louis, não demora muito para que Lestat, ele e Lily, uma das mais requisitadas prostitutas, se envolvam por uma noite.
Apesar do filme carregar um ar homoerótico óbvio, aqui isso é evidente, explícito. Após se envolver com Lestat, Louis se entende como uma pessoa queer. Contudo, ele não pode se assumir, visto que deve manter uma imagem extremamente masculinizada e forte para manter sua posição.
De qualquer modo, tudo o que queríamos ver no filme, aqui é muito claro e bem-feito. A relação dos dois varia entre o amor e ódio e os momentos deles juntos são, mesmo em sua forma mais violenta, muito bonitos – como esperamos ver em uma série sobre vampiros. Ponto positivo.
Além disso, Daniel parece ter passado por poucas e boas (e realmente passou). Na série, ele é mais ácido e tem uma língua afiada. Diferente do Daniel jovem do filme, que estava maravilhado por todo aquele mundo: aqui, Daniel ouve a história como nós ouvimos a qualquer um.
O que se mantém no filme e na série
Apesar das diferenças, alguns detalhes permanecem iguais. O primeiro deles, e justamente é o ponto central de toda a história, é a culpa de Louis.
Culpa e repulsa
Um tempo após ser transformado, Louis passa a sentir culpa por se aliementar de sangue humano, trazendo uma moralidade estranha ao que estamos acostumados ver em um vampiro.
Não poucas vezes, Lestat afirma que Deus não existe. Quando não isso, simplesmente não se importa com essas questões metafísicas. Essa suposta inexistência de Deus é um dos pontos que tornam a privação de Louis algo, à princípio, sem sentido.
Além disso, considerando que há uma hierarquia alimentar “legítima” – visto que vampiros devem se alimentar de sangue humano, que é o melhor em todos os sentidos –, o “vegetarianismo” de Louis se trata de piedade? Pena? Sentimentalismo? Por aqui, parece culpa e repulsa de si mesmo.
A natureza insuperável de um vampiro
Falar em “natureza” pode se tornar um assunto polêmico. Isso porque, não raramente, ela resume o ser humano a algo puramente biológico, desassociando-o de toda questão social que o rodeia. Daí surgem certas noções, como a de que existe uma função intrínseca ao ser humano que é decidida por meio do seu gênero. Dessa forma, há uma determinação biológica incontornável.
Por outro lado, pode não ser o mesmo para os vampiros. Há séculos, vampiros são monstros não-humanos e, portanto, supostamente não compartilham da mesma influência social que nós. Não há moralidade, não há erros. Dessa forma, o desejo por sangue é apenas uma necessidade. Não por acaso, quando transformados, todos os sentidos dos vampiros são alterados para que eles sejam nossos predatores naturais.
Nesse sentido, a culpa de Louis faz ainda menos sentido, visto que, pela hierarquia alimentar, Louis pode ser “limitado” às suas necessidades, sua natureza, sem que isso se transforme em um problema ético ou moral e, portanto, não deveria ser passível de sentir culpa. A não ser…
Vampiros são monstros com humanidade
Nem sempre a liberdade vampiresca foi algo positivamente atraente. O hedonismo dos vampiros acompanha a figura de um monstro assassino e assustador, de um demônio. Em Drácula, Bram Stoker não hesita em caracterizar o vampiro como algo horroroso, repulsivo. Dessa forma, o vampirismo e toda a liberdade que o carrega são costumes monstruosos.
Mais tarde, essa noção começou a ser ressignificada e, em Entrevista com o Vampiro, os “monstros” já não são tão monstruosos assim: e podem até serem muito “humanos” – que acompanham questões morais e, consequentemente, justificam a culpa e privação de Louis.
Contudo, essa “humanidade” – esse julgamento moral, essa culpa e nojo de si acompanha o mocinho da história: Brad Pitt no filme, Jacob Anderson na série. Dessa forma, o maniqueísmo é finalmente posto em prática para que Lestat seja o vampiro mau: o monstro sedento, carregado de impulsos e apaixonado por si.
Os vampiros e a nossa relação com Deus – e conosco
Na natureza, o ser humano ocupa o topo da cadeia alimentar (por nossa tecnologia). Nesse sentido, é natural que matemos e comemos outros animais sem pedir licença. Não há uma questão moral que a maioria das pessoas se preocupem.
Em tese, o mesmo acontece com os vampiros. Somos suas presas naturais e, portanto, “inferiores”. Não há razão para se sentir mal por se alimentar. Não há tabu.
Entretanto, a culpa de Louis demonstra algo diferente: talvez os vampiros não sejam bichos, animais monstruosos; talvez por serem muito semelhantes a nós e serem capaz de se comunicar de igual para igual conosco, o obstáculo para a falta de pena, empatia e sentimento é muito menor.
Louis retoma sua “consciência” e enxerga seu desejo como uma maldição imoral, não como uma necessidade impossível de contornar.
Isso se parece com a nossa relação com nossos desejos e a influência da culpa cristã sobre eles. Quando cedemos aos nossos desejos – que, ironicamente, somos dotados, bem como os vampiros são dotados de desejo por sangue – somos reduzidos a monstros, afastados do bem e da moral. A privação entra aqui como a única forma de penalizar o corpo duplamente maculado dos vampiros.
Pensando dessa forma, os vampiros são, sim, nossos monstros, e Louis foi condenado a viver um eterno inferno com a culpa e repulsa de si – até aprender a lidar com ela! Seja como for, a ressignificação dos vampiros é mínima: antes, os vampiros eram monstros por completo, bichos demoníacos que superamos após matá-los; agora, ainda são monstros, mas amaldiçados e passíveis de serem oprimidos por uma moralidade, se redimir e, finalmente, encontrar um equilíbrio (como o Louis do filme e da série parecem ter encontrado).
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