Ao longo da primeira semana da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, assistimos dois filmes bem distintos, mas que buscam retratar a essência de uma cultura específica de forma semelhante. Ambos os longas aproximam o espectador dos moradores de uma região ao explorar a poesia de seus relatos e momentos cotidianos com um olhar sensível e documental.
São estes o drama histórico português Grand Tour, um dos filmes exibidos durante o MUBI Day, vencedor do prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes e selecionado para a categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2025; e o documentário brasileiro Intervenção, vencedor do Prêmio ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Confira as críticas abaixo:
Grand Tour
Grand Tour, filme português de Miguel Gomes (As Mil e Uma Noites) se passa em 1917 e acompanha a trajetória do funcionário público do Império Britânico, Edward (Gonçalo Waddington), que foge para outro continente no dia do seu casamento. O que ele não antecipa é que sua noiva, Molly (Cristina Alfaiate), está decidida a se casar e o segue por toda a Ásia.
Com roteiro original escrito a dez mãos por Gomes, sua esposa e parceira criativa Maureen Fazendeiro, além de Telmo Churro, Mariana Ricardo e Babu Targino, Grand Tour trata-se de um longa de viagem com traços documentais. Esteticamente o filme é mesmo um feito grandioso, filmado predominantemente em preto e branco em película 16mm assim como o filme anterior de Gomes, “Tabu”.
Com mais de duas horas de duração, a trama traz um elenco português no papel de ingleses pelo sudeste e leste asiático, passando por países como Tailândia, Vietnã, Filipinas, Japão e China. Destaca-se também a presença dos brasileiros Thales Junqueira (Bacurau) e Marcos Pedroso (Que Horas Ela Volta?) na direção de arte.
A propósito, vale destacar uma curiosidade a respeito da produção, que foi uma verdadeira empreitada. Para rodar “Grand Tour”, o diretor reuniu quatro fotógrafos para filmar em locações e estúdios diferentes em virtude das restrições estabelecidas pela pandemia do coronavírus, de forma que Gomes e sua equipe precisaram comandar parte das filmagens remotamente.
Grand Tour é em primeiro lugar de um diário de viagem, mais uma vez semelhante a seu antecessor, Tabu, por também ser situado em um contexto colonial, desta vez utilizando o oriente e personagens de origem inglesa ao invés da ‘África portuguesa’.
A trajetória de Edward lembra a frase do cineasta lituano Jonas Mekas em seu filme “Lost, Lost, Lost” (1976): “Já que não há um espaço que seja realmente seu, nenhum espaço que seja de fato sua casa, ele tem tido este hábito de se afixar imediatamente a qualquer espaço”. Como na filmografia de Mekas, a estética do diário filmado reforça o profundo sentimento de desenraizamento do protagonista através da representação dos lugares por onde passa.
O filme em questão causou bastante polarização da crítica por seu ritmo lento e estilo menos sofisticado quando comparado a Tabu, porém ainda contemplativo e experimental. Mas são justamente as excentricidades dessa linguagem que tiram o espectador do lugar comum para redescobrir a cultura oriental de uma forma diferente, assim como seus personagens.
Em entrevista à revista americana Film Comment em junho de 2024, o diretor revelou que o principal propósito do filme é o divertimento, mostrar coisas que interessaram à equipe, como diferentes tipos de teatros de marionetes. Ele explica as quebras constantes de realismo de seus filmes com a ideia de que hoje os filmes se esforçam muito para convencer as pessoas de o que estão vendo são coisas deste mundo, quando na verdade pertencem ao mundo do cinema, um universo paralelo com suas próprias leis. Gomes compreende que hoje existe um esforço de tentar corrigir o mundo com o cinema, que ele valoriza, mas julga impossível. “Você não pode mudar o mundo com cinema” ele diz, “ mas pode abrir a mente das pessoas e então talvez elas possam tentar corrigir o mundo.”
O comentário acima explica o lado mais brincalhão e fantasioso de “Grand Tour”, assim como a determinação de Gomes em produzir retratos contemporâneos de uma sociedade pós-colonial, de expor uma realidade sem fazer um julgamento sobre ela. O filme reconhece as cicatrizes do passado imperialista no Oriente, mas busca ressignificar sua história através de um registro da passagem do tempo, da sensação de deslocamento dos personagens que buscam algum senso de pertencimento do outro lado do mundo. Nesse sentido, o verdadeiro valor da obra está na imersão na experiência de uma jornada nem sempre coesa, mas sem dúvida hipnotizante em sua beleza.
Intervenção
Documentário nacional do diretor paulistano Gustavo Ribeiro (Todos os Paulos do Mundo), filmado ao longo de quatro anos, acompanha o drama dos moradores de três comunidades na zona oeste da cidade de São Paulo, em sua luta por melhores condições de vida enquanto enfrentam oposição dos condomínios de luxo na vizinhança.
O cenário deste conflito é o bairro da Vila Leopoldina, considerado uma área nobre povoada por residências de alto padrão. Não muito longe dali estão as favelas da Linha, do Nove e o conjunto habitacional Cingapura Madeirite. Em 2016, a apresentação do Projeto de Intervenção Urbana (PIU) gerou um choque de classes entre os habitantes da região, visto que o PIU permite que empresas privadas proponham planos de urbanização à prefeitura. Como contrapartida, a empresa executante do projeto ganha o direito de construir prédios com mais andares em uma região de grande interesse do setor imobiliário da cidade.
A disputa teve início quando a Votorantim, empresa proprietária de diversos terrenos sem uso na região, elaborou um projeto de realocação de cerca de 3 mil habitantes de moradias populares no entorno na CEAGESP para novas edificações construídas para seu uso, uma delas situada exatamente ao lado das construções mais luxuosas do bairro.
São os moradores destes condomínios que se opõem à iniciativa, alegando a desvalorização de seus imóveis, contaminação do terreno em que serão construídas os novos edifícios, e a dificuldade dos novos moradores para arcar com os preços altos da região. O projeto foi alvo de acalorados debates entre os representantes dos condôminos e das comunidades sem consenso, adiando o sonho dessas pessoas de uma moradia digna.
Após anos de descaso das autoridades, o projeto foi aprovado com rapidez após modificações que alocavam os membros da comunidade para o terreno mais distante dos condomínios, implicando que o maior motivo por trás de tanta oposição era de fato o preconceito e a luta de classes.
O resultado do embate habitacional foi anunciado não só no documentário como nas notícias da capital. Porém, dificilmente uma notícia saberá transmitir com tanta delicadeza e afeto o retrato dos moradores da região, desde seus medos e anseios até suas histórias e particularidades. O recorte de Ribeiro torna suas personagens humanas além do sofrimento de sua luta, dando espaço também para ternos momentos em família, e não raras vezes cômicos comentários sobre a situação.
A primeira sessão do documentário na Mostra foi também a estreia do longa nos cinemas e contou com a sala lotada, inclusive de moradores da comunidade que apareceram no longa. Foi uma experiência única presenciar a alegria dessas pessoas em se verem representadas finalmente na tela grande; um deles riu incrédulo durante todo o tempo em que esteve em cena, enquanto outro carregava no olhar a mesma determinação que manteve durante todo. as audiências públicas.
“Intervenção” conquistou não apenas o público, como os críticos da 48ª Mostra, concedendo-lhe o prêmio de Melhor Filme Brasileiro da Competição Novos Diretores. O diretor Gustavo Ribeiro, aliás, revela-se prolífico na questão da moradia e do direito de ocupação nas cidades. Além de “Intervenção”, ele também esteve em cartaz na Mostra com o documentário “Ocupa SP”, que aborda histórias de resiliência de diversas comunidades em São Paulo capital.
Confira outros textos da nossa cobertura na 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo:
- Crítica | Serra das Almas retrata desajustados no nordeste brasileiro
- Crítica | Megalópolis e os delírios de um velho sonhador
- 48ª Mostra | Também Somos Irmãos; Um é Pouco, Dois é Bom
- 48ª Mostra | Zoo venezuelano de Mariana Rondón remonta miséria do país em filme
- Crítica | Anora é a Cinderela do capitalismo tardio
- 48ª Mostra | Sol de Inverno, Manas, O Senhor dos Mortos
- 48ª Mostra | Pequenas Coisas Como Estas, Barba Ensopada de Sangue
- Crítica | Continente: Vampiros, ruralistas em um terror brasileiro
- 48ª Mostra | Os Maus Patriotas, Mambembe
- ‘É onde se concentra a maior parte da população’, diz Fernando Coimbra sobre filmes retratando a vida suburbana
- 48ª Mostra | The Surfer, Oeste Outra Vez
- Crítica | Os Enforcados é uma tragédia de erros no subúrbio carioca
- 48ª Mostra | Tudo Que Imaginamos Como Luz, O Banho do Diabo
- Crítica | Ainda Estou Aqui: a força de uma mãe e a luta pela memória
- 48ª Mostra | No Céu da Pátria Nesse Instante, Maria Callas
- 48ª Mostra | Harvest, Dahomey, Salão de Baile
- 48ª Mostra | Sujo; Não Chore, Borboleta
Deixe uma resposta