No primeiro dia oficial da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo acompanhei três longas. Dois documentários e um longa-metragem medieval. O primeiro dele foi essa ficção dirigida pela grega Athena Rachel Tsangari (“Chevalier”).
Harvest
Harvest é uma obra visualmente impressionante, mas narrativamente frustrante. O filme, uma adaptação do romance homônimo de Jim Crace, se passa em uma vila medieval inglesa que lentamente desaparece diante de seus habitantes, apesar de eles não entenderem o porquê.
A trama gira em torno de Walter Thirsk (Caleb Landry Jones), um outsider que observa os eventos catastróficos que atingem a comunidade, incluindo um incêndio misterioso e a chegada de três forasteiros, enquanto questiona seu próprio pertencimento àquela sociedade.
Embora tecnicamente impressionante, com uma fotografia hipnotizante de Sean Price Williams, a direção de Tsangari prioriza a atmosfera e a ambiguidade em detrimento de uma narrativa envolvente. O ritmo arrastado e a dependência excessiva de metáforas visuais criam uma experiência esteticamente rica, mas emocionalmente distante.
A falta de desenvolvimento claro dos personagens e a acumulação de símbolos sem resolução contribuem para uma sensação de frustração, tornando o filme mais uma peça de arte visual do que uma história impactante.
Algo que particularmente me incomodou nessa acumulação de símbolos é que existem dois personagens negros, sendo que um deles está numa posição social diferente da que estamos acostumados em obras desse tipo, contudo, quando parecia que essa trama e simbolismo da ciência – representada pela catalogação de terras por mapas e que estava ajudando o capitalismo a dizimar populações e culturas por conta do lucro – iriam pra frente, o filme resolve terminar como um fim de temporada de uma série que peguei pela metade.
Seu excesso de contemplação impede que a trama realmente decole, deixando o público imerso em uma atmosfera intrigante, porém sem direção.
Dahomey
Dahomey, do cineasta franco-senegalês Mati Diop, é um documentário híbrido impressionante e profundamente reflexivo sobre o impacto duradouro do colonialismo. O filme, que venceu o Urso de Ouro em Berlin, acompanha a repatriação de 26 tesouros saqueados da França para Benin, o antigo Reino de Daomé, abordando tanto os aspectos práticos dessa devolução quanto as implicações culturais e históricas desse processo.
Com uma mistura de fato e ficção, Diop dá vida a uma estátua do Rei Ghézo, que reflete sobre sua longa jornada no exílio e seu retorno à terra natal após mais de um século “fora de casa”. Essa narrativa poética com uma abordagem observacional, que documenta a jornada dos artefatos e a cerimônia de seu retorno, mas também coloca o foco nos debates entre intelectuais e trabalhadores da cultura sobre a continuidade do processo de descolonização.
O filme não apenas levanta questões difíceis sobre a restituição de bens culturais roubados, mas também propõe um olhar sensível sobre a reconciliação com o passado colonial. O estilo contemplativo de Diop, com longos planos e uma narrativa calma, convida o espectador a refletir sobre as cicatrizes profundas do colonialismo e o que deve ser feito para curá-las. Ao final, Dahomey sugere — apenas sugere — que a repatriação desses tesouros é apenas o primeiro passo em um longo caminho de reparação e reconquista da identidade cultural.
Mas o ouro desse longa está em mostrar a multiplicidade das pessoas de uma mesma nação, ainda mais se tratando de um país do continente africano, onde essas pessoas geralmente são lidas de maneira tão uniforme.
Salão de Baile
Salão de Baile é uma tentativa ousada — mas muito honesta — de capturar a essência vibrante da cultura ballroom, movimento que ganhou notoriedade com o icônico “Paris is Burning” e também pelo reality show “RuPaul’s Drag Race”.
Embora o filme siga uma fórmula semelhante ao clássico, com narrativas organizadas por Houses, apresentação das categorias de baile e as gírias estilizadas na tela, ele tem uma identidade própria ao destacar a cena ballroom emergente no Rio de Janeiro.
O ponto alto do documentário é, sem dúvida, a celebração pura da dança e da música, capturada com cores vívidas, como o rosa-choque, que refletem a energia e a alegria inerentes ao ballroom. As performances são um deleite visual, e a trilha sonora polirrítmica acompanha perfeitamente a explosão de expressividade dos participantes.
Há alguns que podem achar um tropeço na sua tentativa de abordar temas mais profundos, como questões de gênero e os perigos de ser trans no Brasil em vez de seguir uma linha clara e coesa. Eu, particularmente, acho que abraçar o caos, enquanto o filme era montado, foi uma escolha deliberada de Juru e Vitã, que dirigem o documentário.
Essa tentativa de abraçar várias narrativas ao mesmo tempo pode acaba tornando sua mensagem política confusa e desconexa, mas é isso que vemos em tela, os corpos, a vivência e as peles são diferentes.
Por fim, Salão de Baile é uma obra valiosa e educativa, lançando luz sobre a cultura ballroom no Brasil e os desafios enfrentados por essa comunidade. Apesar de algumas confusões — são muitas informações pulando na tela e acabei esquecendo de muitas da sessão até o momento que escrevo esse texto —, o filme oferece uma experiência envolvente, permitindo ao público mergulhar nas personalidades únicas e na música contagiante que impulsionam essa forma de arte em constante reinvenção.
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