Na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, três filmes em destaque mergulham em temas provocativos, de relações familiares complexas a distopias de poder e reflexões sobre o luto. O Clube das Mulheres de Negócios, de Anna Muylaert, apresenta uma sátira sobre uma sociedade dominada por mulheres, onde o humor e o terror se misturam em uma inversão crítica de papéis de gênero. Já Dying – A Última Sinfonia, de Matthias Glasner, explora a desconexão emocional em uma família que lida com a finitude da vida e o peso do passado. Por fim, Malu, de Pedro Freire, revela as fraturas e afetos turbulentos entre três gerações de mulheres ligadas por traumas e resiliência. A seguir, confira as críticas desses três filmes que deixaram marcas na Mostra:
O Clube das Mulheres de Negócios
Imagine uma sociedade onde as mulheres ocupam o topo do mercado de trabalho, lideram famílias e mandam nas instituições enquanto os homens ocupam papéis submissos e são objetificados. Essa é a premissa de O Clube das Mulheres de Negócios, nova sátira de Anna Muylaert. Com um elenco de peso e uma abordagem ousada, o filme traz Irene Ravache, Louise Cardoso, Ítala Nandi e outros talentos em uma fantasia distópica que explora questões de gênero, poder e corrupção no Brasil.
A narrativa segue mulheres poderosas em um clube exclusivo, onde exercem poder absoluto enquanto homens jovens, musculosos e com roupa curta circulam como objetos de desejo. A inversão de papéis é total: os homens, expostos e oprimidos, vestem-se para agradar, enquanto as mulheres dominam com uma postura grotesca e agressiva. Muylaert recorre a uma estética kitsch, criando um contraste visual entre a beleza da fotografia e o comportamento vulgar das personagens, uma ironia que ajuda a manter a crítica social afiada.
No entanto, O Clube das Mulheres de Negócios não se limita ao exagero cômico. A sátira logo cede espaço ao terror quando onças selvagens escapam e começam a perambular pelo clube, trazendo um elemento quase surreal e sinistro à história. As mulheres poderosas, tão seguras de sua impunidade, inicialmente ignoram o perigo, acreditando que as aparências devem ser mantidas a todo custo. Mas a situação rapidamente sai do controle, expondo o quão desconectadas estão essas personagens da realidade ao seu redor.
Muito do impacto do filme vem dessa mistura de gêneros: a comédia inicial, com suas caricaturas de figuras da elite, dá lugar ao horror e à ameaça das feras, que representam o despertar da natureza e uma crítica à arrogância das elites. Muylaert utiliza o artifício das onças digitais, um recurso inusitado para o cinema brasileiro, para intensificar a atmosfera surreal e criar uma alusão ao “capitalismo selvagem” devorando a si mesmo. O CGI reforça o caráter fantasioso e quase onírico da trama, aproximando o filme do tropicalismo, do realismo fantástico e de influências de filmes de gênero, especialmente “Jurassic Park”.
Além das inversões de gênero, o filme questiona o racismo e a desigualdade ao mostrar que, apesar da inversão de poder, as injustiças permanecem. Jongo, vivido por Luís Miranda, um homem negro bem-sucedido, é constantemente subestimado no ambiente elitista, algo que o aproxima do desconforto racial explorado em “Corra!”. Com esse personagem, Muylaert traz à tona questões raciais em meio à sátira, intensificando a crítica sobre como o sistema é excludente, mesmo com novas dinâmicas de poder.
O Clube das Mulheres de Negócios é uma crítica ácida e repleta de camadas, e mesmo ao transitar do humor para o terror, mantém seu propósito de questionar as estruturas de poder no Brasil. A opção por um tom mais sério no clímax pode afastar o filme da leveza inicial, mas não diminui a força de sua mensagem. Muylaert desafia o público a rir das situações, refletir sobre elas e, ao final, encarar uma realidade distorcida, mas próxima, em uma obra que se coloca como um retrato provocativo e original do Brasil contemporâneo.
Dying – A Última Sinfonia
Dying – A Última Sinfonia, dirigido por Matthias Glasner, é um drama impactante e sombrio sobre uma família disfuncional e emocionalmente distante. Com um olhar implacável, o filme explora o distanciamento entre pais e filhos e a falta de afeto que marca suas relações. O filme começa com uma dedicatória do diretor à sua própria família, o que adiciona uma ironia intrigante, especialmente após assistirmos uma história de relações familiares tão frias e cheias de mágoas não resolvidas.
No centro da história está a família Lunies: os pais idosos e doentes, Lissy e Gerd, e os filhos adultos, Tom e Ellen, que vivem ocupados com suas próprias vidas desorganizadas. Lissy, praticamente cega, cuida do marido que sofre de demência, enquanto os filhos estão perdidos em suas vidas pessoais — Tom, um maestro, lida com um relacionamento complicado, e Ellen, entre o alcoolismo e o romance com um dentista casado, enfrenta o vazio de uma vida sem rumo. A relação entre eles é marcada por uma falta de apoio e uma frieza que deixa a família ainda mais desconectada.
A montagem é um destaque, dividindo o filme em blocos que refletem temas como “vida” e “amor”, o que reforça a ideia de uma família que se desintegra. Em vez de tentar mostrar uma narrativa linear e suave, Glasner opta por uma estrutura que reforça o caos e a desordem da dinâmica familiar. O distanciamento emocional é também enfatizado pela câmera, que, enquanto capta as fraquezas físicas dos pais, foca de perto nas crises dos filhos, como se eles fossem ilhas isoladas em meio a suas próprias angústias.
A falta de afeto entre os personagens é quase chocante. Mesmo nos momentos de maior fragilidade, não há uma troca de carinho ou apoio entre eles. O filme mostra como os personagens lidam com suas dores e desafios sozinhos, sem o consolo da família. Esta ausência de empatia ou solidariedade entre os Lunies deixa claro o distanciamento que os define, refletindo uma frieza quase impessoal que ecoa o individualismo do mundo moderno. Cada um parece preso ao próprio ego, o que só aumenta o peso das suas vidas já solitárias.
Apesar da atmosfera sombria, Glasner insere momentos de humor negro que quebram um pouco a tensão. Algumas cenas, como os encontros no consultório ou os desencontros da vida de Tom, trazem um toque de ironia e leveza que ajudam a manter o espectador envolvido. Esses momentos cômicos quase absurdos mostram como o diretor brinca com temas tabu e desafia o público a rir, mesmo quando o riso vem misturado com o desconforto.
Dying – A Última Sinfonia é uma obra crua e corajosa sobre o isolamento emocional e os conflitos familiares. Matthias Glasner entrega um filme que foge de sentimentalismos e vai direto ao ponto, oferecendo um retrato sem filtro de personagens presos em suas próprias frustrações. É uma experiência intensa e, para quem gosta de dramas familiares densos, é um estudo provocante sobre até onde vão os laços familiares e até onde eles podem se romper.
Malu
Em Malu, Pedro Freire faz sua estreia na direção de longas-metragens com uma história sensível e corajosa sobre uma mulher dividida entre a complexidade da família e o caos da arte. Inspirado na vida da atriz Malu Rocha (1947-2013), mãe do próprio diretor, o filme apresenta três gerações de mulheres cujas histórias entrelaçadas revelam traumas profundos e relações em constante atrito. Com diálogos intensos e performances notáveis, Malu se destaca por seu olhar genuíno sobre os desafios emocionais e existenciais de suas protagonistas.
A protagonista, Malu (Yara de Novaes), é uma atriz marcada pela intensidade e pelo carisma, vivendo entre a fragilidade e a coragem. Em seu lar, localizado numa favela e simbolicamente sempre em construção, Malu recebe sua mãe conservadora, Dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha), e sua filha Joana (Carol Duarte). A chegada de Joana torna o ambiente ainda mais conflituoso, trazendo à tona conflitos que revelam tanto o amor quanto o desespero entre as três mulheres. O filme é uma janela para as dificuldades de manter relações familiares de cabeças e gerações tão distintas.
Freire foge de rótulos simplistas ao explorar o interior de cada personagem sem recorrer a maniqueísmos. O filme não apresenta suas personagens como heroínas ou vilãs, mas sim como mulheres reais, com todas as suas falhas e vulnerabilidades. Com close-ups intensos e diálogos ultrarrealistas, o cineasta enfatiza o clima de tensão, criando uma experiência quase claustrofóbica para o espectador, que é constantemente desafiado a entender o lado de cada mulher.
As atuações são o ponto alto de Malu. Yara de Novaes se destaca pela entrega total à personagem, dando vida a uma Malu intensa e imprevisível. Carol Duarte, em uma interpretação contida, transmite com sensibilidade o dilema de Joana, dividida entre a vontade de ajudar e o desgaste emocional que o convívio com a mãe impõe. Juliana Carneiro da Cunha, por sua vez, traz profundidade à personagem Dona Lili, exibindo sua humanidade ambígua e seus valores que misturam amor e conservadorismo.
O filme toca na questão do choque de gerações e na dificuldade de cada uma das personagens em compreender as escolhas e as falhas das outras. As interações entre Malu, Joana e Dona Lili refletem perguntas sobre o que se perde e se ganha ao longo das gerações e como essas mulheres lutam para se aceitar e para se apoiar. O longa responde a essas questões com um toque de ternura, mostrando que mesmo em meio a conflitos, o amor entre mãe, filha e avó persiste.
Malu é um filme cru e poético, abordando temas de resistência, desajuste e a busca por afirmação através da arte e do afeto. Freire cria uma obra que, embora dolorosa, é essencialmente bela, revelando o poder e a fragilidade das relações familiares. É uma homenagem à arte e à luta diária pela sobrevivência emocional, uma mensagem que ressoa com quem já enfrentou os dilemas das relações familiares.
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