48ª Mostra | Sol de Inverno, Manas, O Senhor dos Mortos
Sphere Films Canada/Divulgação

48ª Mostra | Sol de Inverno, Manas, O Senhor dos Mortos

Na reta final do 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo cheguei ao ponto em que não consigo mais achar elos para compilar filmes assistidos durante a programação. Desta vez eu junto o brasileiro e duríssimo Manas, o japonês Sol de Inverno e o novo filme do canadense David Cronenberg, O Senhor dos Mortos. Confira minhas críticas resumidas:

Manas

48ª Mostra | Sol de Inverno, Manas, O Senhor dos Mortos
Inquietude Produções Artísticas/Divulgação

Manas, dirigido por Mariana Brennand Fortes, é uma obra que se destaca por sua abordagem sensível e realista das questões que permeiam a vida de uma comunidade ribeirinha na Ilha do Marajó. A diretora traz uma narrativa que, embora fictícia, reflete com profundidade as experiências de muitas crianças da Amazônia, oferecendo uma representação autêntica, dolorosa e distantes de estereótipos.

O enredo aborda de forma contundente temas delicados, como a violência sexual infantil, mas o faz com uma abordagem sutil que evita a exploração sensacionalista. Brennand demonstra uma grande responsabilidade ao retratar essas questões, permitindo que o espectador compreenda a gravidade dos abusos sem transformar a narrativa em um espetáculo de horror. A escolha de sugerir a violência, ao invés de mostrá-la explicitamente, reforça a seriedade do tema e o respeito pela integridade da personagem.

A atuação de Jamilli Correa, que interpreta a jovem Tielle, é um dos pontos altos. Correa entrega uma performance rica em nuances, conseguindo expressar desde a inocência da infância até a dor do enfrentamento de situações extremas. Sua capacidade de transmitir emoções torna a personagem muito mais que uma vítima; Tielle é retratada como uma criança cheia de sonhos, cujos desejos se chocam com a dura realidade ao seu redor. Essa profundidade traz uma dimensão humana à história.

Manas impressiona com sua cinematografia cuidadosa. As escolhas de iluminação e composição de cena capturam tanto a beleza natural da região quanto a dureza da vida cotidiana. A maneira como a câmera se move e enquadra os personagens permite uma imersão no ambiente, fazendo com que o espectador sinta a pressão e a vulnerabilidade que os personagens enfrentam. As transições entre momentos de leveza e de tensão são executadas com habilidade, intensificando o impacto emocional da narrativa.

Por sim, Manas levanta discussões essenciais sobre a educação sexual, mostrando como a falta de compreensão sobre os limites do corpo pode levar a situações trágicas. O filme sugere que a educação é fundamental para proteger as crianças e que a conscientização é um passo vital para combater a cultura do silêncio que cerca esses abusos. Essa mensagem é particularmente relevante em um contexto social onde a educação sexual ainda é um tabu.

Sol de Inverno

48ª Mostra | Sol de Inverno, Manas, O Senhor dos Mortos
Panap Media/Divulgação

Dirigido por Hiroshi Okuyama, Sol de Inverno é um drama sensível que acompanha Takuya (Keitatsu Koshiyama), um jovem que descobre sua paixão pela patinação artística. A narrativa se destaca por evitar os clichês típicos dos dramas esportivos, apresentando uma fluidez tranquila nas interações entre os personagens, sem os conflitos habituais como bullying ou problemas financeiros.

Nos primeiros dois terços, o filme foca nas pequenas vitórias e na camaradagem entre Takuya e sua parceira Sakura (Kiara Nakanishi), além da evolução do professor Arakawa (Sousuke Ikematsu). A mise en scène no ringue de patinação cria uma sensação de intimidade e pertencimento, permitindo que os espectadores se conectem emocionalmente aos protagonistas, mesmo se você nunca sequer andou de patins na vida.

Visualmente, o filme se destaca pela direção de fotografia, que utiliza planos fixos e um formato 1.33:1 (a divisão de 4 por 3), criando uma atmosfera envolvente. Essa estética ressalta a intimidade dos momentos e captura a beleza do movimento, trazendo autenticidade às cenas de patinação.

Entretanto, o terceiro ato introduz uma reviravolta chocante com a revelação, que é tratada de maneira, no mínimo, estranha. O não enfrentamento dessa situação a resulta em algo bastante insatisfatória, perdendo a oportunidade de explorar o potencial dramático da situação, mas, ao mesmo tempo, isso diz muito mais sobre a cultura japonesa em relação ao tema.

Sol de Inverno apresenta uma realização técnica sólida, mas enfrenta dificuldades em estabelecer uma narrativa coesa e impactante. A falta de desenvolvimento dos conflitos e motivações dos personagens prejudica a conexão emocional, fazendo com que a obra se sinta dispersa e incompleta.

O Senhor dos Mortos

48ª Mostra | Sol de Inverno, Manas, O Senhor dos Mortos
Sphere Films Canada/Divulgação

A perda e o luto se manifestam de maneiras distintas, levando algumas pessoas a novas formas de vida e independência, enquanto outras se fecham em si. No mais recente filme de David Cronenberg, O Senhor dos Mortos, seguimos Vincent Cassel como Karsh, um magnata que desenvolveu uma tecnologia para acompanhar entes queridos perdidos em seus túmulos, impulsionado pela morte de sua esposa, Becca (Diane Kruger). Após um ataque a seu cemitério futurístico, Karsh e seu ex-cunhado Maury (Guy Pearce) começam a investigar as razões por trás da profanação.

Cronenberg é um ícone do cinema, conhecido por explorar temas como horror, corpo e tecnologia. O Senhor dos Mortos se destaca como uma adição significativa a esse legado, sendo especialmente pessoal, já que o diretor canalizou seu próprio luto pela morte de sua esposa, Carolyn, na narrativa do filme. Essa conexão emocional torna a obra ainda mais impactante.

Apesar de seu tema sombrio, o filme possui um tom leve e até humorístico. As atuações de Cassel, Kruger e Pearce podem parecer estranhas inicialmente, mas se tornam intencionais e eficazes à medida que a história avança. Cassel, em particular, entrega suas falas de forma risível, refletindo a dessensibilização de seu personagem em relação às imagens perturbadoras que compartilha.

A dinâmica entre Karsh e Maury destaca como diferentes pessoas lidam com o luto. Enquanto Karsh busca criar um avanço tecnológico após a perda de sua esposa, Maury se isola em seu apartamento, tentando reaver sua ex-esposa. O incidente de vandalismo no cemitério os leva a explorar teorias e conspirações, revelando suas jornadas pessoais de dor.

Já Kruger se destaca ao interpretar múltiplos papéis, incluindo Becca e sua irmã gêmea, Terry. Seu desempenho revela tanto o profundo afeto da personagem por Karsh quanto a fascinação distante de Terry.

O Senhor dos Mortos é uma reflexão poderosa sobre o luto e as mentiras que contamos a nós mesmos. Cronenberg entrelaça sua experiência pessoal na narrativa, enfatizando a importância do tempo com aqueles que amamos. Embora a trama tenha algumas reviravoltas na parte final, elas espelham o processo não linear da cura.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.