48ª Mostra | Também Somos Irmãos; Um é Pouco, Dois é Bom

A preservação de clássicos do cinema negro brasileiro vai além da mera valorização artística; trata-se de uma ação fundamental para a conservação da memória cultural e histórica do Brasil. Durante a 48ª década edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, os filmes Também Somos Irmãos e Um é Pouco, Dois é Bom, recentemente restaurados em 2K e 4K, respectivamente, ganharam uma sessão dupla na Cinemateca Brasileira, na sala Grande Otelo, que leva o nome de um dos maiores atores da história do país e protagonista do primeiro longa. Confira nossas críticas!

Também Somos Irmãos

Lançado em 1949, Também Somos Irmãos, dirigido por Alinor de Azevedo e José Carlos Burle, emerge como um marco no cinema brasileiro, oferecendo uma reflexão poderosa sobre o racismo em um país que se aproximava dos anos 50. A escolha de atores do Teatro Experimental do Negro e Grande Otelo não só enriqueceu a narrativa, mas também conferiu uma autenticidade à representação das vivências negras. No entanto, a recepção do filme, aclamada pela crítica mas ignorada pelo público, levanta questões sobre o impacto e a acessibilidade das discussões raciais na época.

Cinematograficamente, a obra se destaca pelo uso de um olhar que, apesar de seu contexto elitista, tenta abordar a integração do negro na sociedade brasileira.

Azevedo e Burle parecem, paradoxalmente, articular uma visão da branquitude que condiciona a inclusão negra a uma mudança de atitude que, idealmente, deveria ser mútua: os brancos precisam superar seus preconceitos, enquanto os negros são incentivados a renunciar à sua identidade cultural para serem aceitos. Essa dualidade cria uma dinâmica de tensão evidente, mostrando que a luta por igualdade está presa a uma estrutura social que ainda coloca os negros em uma posição inferior.

O jogo de sombras e iluminação é utilizado de forma eficaz para intensificar o clima emocional do filme. As sombras frequentemente envolvem os personagens em momentos de tensão, sobre tudo aos protagonistas, os irmãos Renato (Agnaldo Camargo) e Miro (Otelo), simbolizando a dualidade entre aceitação e rejeição, e reforçando a atmosfera de conflito que permeia a narrativa.

A própria mansão do Sr. Requião (Sérgio de Oliveira) se torna uma metáfora para as barreiras sociais e raciais que separam brancos e negros no Brasil. Este espaço, repleto de ostentação e exclusividade, simboliza não apenas a riqueza e o poder da elite branca, mas também a opressão e a marginalização das populações negras. A impossibilidade de acesso à mansão reflete as desigualdades estruturais que permeiam a sociedade, evidenciando como os negros são frequentemente excluídos dos círculos de poder e influência. Essa representação visual reforça a ideia de que, para que haja uma verdadeira inclusão, é necessário romper com esses espaços simbólicos que perpetuam a segregação e a discriminação.

Também Somos Irmãos não só fala sobre a aceitação, mas também mostra a revolta como uma resposta legítima às tensões nas relações raciais, destacando o medo que permeia a sociedade branca. O filme critica a ideia de “Democracia Racial”, que promete integração, mas na verdade mantém os negros em uma posição subordinada, sem enfrentar as desigualdades de verdade. A atuação de Grande Otelo é fundamental nesse contexto, trazendo uma profundidade emocional que reforça a mensagem do filme.

Assim, Também Somos Irmãos se torna mais do que um filme: ele é um convite para refletirmos sobre as dinâmicas raciais de 1949, mas que ainda existem no Brasil hoje.

Um é Pouco, Dois é Bom

Um É Pouco, Dois É Bom, dirigido por Odilon Lopez, é uma comédia irônica que permeia até as situações mais tensas, usando o humor como forma de crítica social. O filme, estruturado em dois episódios distintos, explora temas psicológicos e sociais com um olhar provocativo, alternando entre o riso desconcertante e uma forte sátira social. Lopez desafia o espectador a rir de situações desconfortáveis, fazendo da comédia uma arma afiada contra os absurdos da vida urbana e as tensões sociais e raciais do Brasil dos anos 1970.

No primeiro capítulo, o filme adota uma abordagem próxima ao terror psicológico, onde o humor ácido reflete os temores e incertezas da classe trabalhadora brasileira durante o período do “milagre econômico”. Lopez usa o contexto da década de 70 para explorar o medo generalizado e o sentimento de alienação, criando um tom de suspense. Ao fazer isso, ele captura o mal-estar de uma sociedade às voltas com promessas de progresso que vinham, muitas vezes, acompanhadas de dúvidas e crises de identidade.

Já na segunda parte do longa, Lopez se aprofunda em uma crítica ao racismo estrutural. A comédia ganha contornos mais diretos, expondo as contradições da sociedade brasileira ao tratar questões de raça com um toque irônico. Aqui, o humor funciona como um espelho distorcido que revela as desigualdades sociais, ao mesmo tempo que coloca os espectadores de frente com as hipocrisias de uma sociedade que tenta aparentar tolerância enquanto preserva práticas racistas.

Um dos elementos marcantes dessa segunda história é o retrato de pares em situações de conflito — como amantes e bandidos — que, de maneira simbólica, expõem as “duplas morais” da sociedade. Esse episódio antecipa questões que o diretor Jordan Peele abordaria, décadas depois, em Corra!, ao explorar os paradoxos das elites brasileiras, que viviam entre ideais de liberdade e conservadorismo político. Os personagens encarnam uma juventude burguesa em crise, dividida entre o discurso de igualdade racial e práticas de exclusão social.

A restauração digital em 4K resgata a beleza visual do filme e o apresenta em uma nova dimensão, permitindo ao público moderno revisitar a cidade de Porto Alegre sob uma nova ótica, muito mais colorida do que nos acostumamos. Este cenário, ao mesmo tempo familiar e estranho, evoca um sentimento de pertencimento e distanciamento, tornando o filme não apenas uma obra visualmente marcante, mas também uma experiência que explora a identidade urbana brasileira menos careta.

Um É Pouco, Dois É Bom é uma ótima combinação de sátira, crítica social e uma construção estética, sendo uma importante contribuição ao cinema negro brasileiro. Com seu final inesquecível e seu olhar afiado sobre os desafios da vida urbana e racial, o filme de Odilon Lopez provoca risos, desconforto e reflexão sobre as contradições da sociedade brasileira.

Confira outros textos da nossa cobertura na 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.