O2 Play Filmes/Divulgação

48ª Mostra | The Surfer, Oeste Outra Vez

Em mais dois filmes que assisti na 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, The Surfer e Oeste Outra Vez encontrei na forma que ambos os filmes, sob óticas distintas, exploram as complexidades da masculinidade em crise, oferecendo uma reflexão sobre como os homens lidam com pressões sociais e emocionais.

Os protagonistas enfrentam uma luta interna contra expectativas de virilidade enraizadas em normas ultrapassadas, seja no contexto desolado do sertão brasileiro ou nas ondas imprevisíveis de um oceano metafórico australiano.

Enquanto Oeste Outra Vez retrata o silêncio e a violência entre homens no árido sertão goiano, presos a um código de masculinidade performativa, The Surfer traz Nicolas Cage como um surfista que resiste a ser engolido por um vórtice de expectativas sociais em meio a sua crise de meia-idade.

Ambos os filmes usam a paisagem — o deserto e o oceano — como metáforas para a solidão e a luta interna, questionando a ideia de masculinidade essencial em um mundo que continua a transformá-la.

The Surfer

48ª Mostra | The Surfer, Oeste Outra Vez
Madman Films/Divulgação

The Surfer é mais um exemplo fascinante do trabalho subversivo de Lorcan Finnegan, que, assim como em “Vivarium”, mistura o surrealismo com uma crítica social. Neste novo filme, com Nicolas Cage no papel de um surfista em crise de meia-idade, o diretor explora questões profundas sobre masculinidade, identidade e isolamento, em uma narrativa que tanto desafia quanto instiga o espectador.

Cage, conhecido por seu estilo excêntrico e performances intensas, tem em The Surfer um grande parque de diversões para criar um personagem que vai te causar dor física por tudo que ele se submete.

Aqui, ele interpreta um homem preso entre a pressão social de aderir a uma forma antiquada e rígida de masculinidade e o desejo de se libertar, buscando sua própria fantasia de individualidade. A crise de meia-idade de seu personagem não é apenas pessoal, mas reflete uma batalha cultural maior, onde a ideia de “masculinidade essencial” tenta se manter em meio a uma transformação ideológica mais ampla.

Finnegan utiliza elementos do surrealismo para questionar essa nostalgia por uma masculinidade “pura”, que, em tempos pós-modernos, já não encontra mais lugar. Em vez de uma resistência aberta, essa tentativa de reviver a masculinidade tradicional surge como um culto secreto e isolado, uma comunidade à margem, que ecoa de maneira inquietante com os tempos atuais. A arena em que as fantasias dos personagens colidem é tanto um espaço psicológico quanto literal, onde a realidade e a ilusão se entrelaçam.

A direção de Finnegan brinca constantemente com o que é real e o que é imaginação, criando uma tensão entre a busca individual de liberdade e a pressão social. O humor surreal, que surge nos momentos mais inesperados, proporciona um alívio em meio à inquietação e ao desconforto, tornando o filme uma montanha-russa emocional.

Cage entrega uma performance magnética, navegando entre a excentricidade e a vulnerabilidade, em um papel que exige tanto fisicamente quanto psicologicamente. Sua luta interna, simbolizada pelo surfe, é um reflexo do esforço para não ser tragado pela corrente avassaladora das expectativas masculinas. O oceano, com suas ondas poderosas e incontroláveis, serve como uma metáfora para as forças sociais invisíveis que moldam, e muitas vezes aprisionam, o conceito de virilidade.

The Surfer é um filme que, embora possa ser visto como um entretenimento excêntrico à primeira vista, esconde camadas profundas de crítica à maneira como nossa sociedade ainda lida com o conceito de masculinidade. Finnegan consegue, com sua abordagem estilística surreal, fazer com que o espectador se questione: o que é, afinal, ser “homem” hoje em dia?

Oeste Outra Vez

48ª Mostra | The Surfer, Oeste Outra Vez
O2 Play/Divulgação

Oeste Outra Vez é um filme que nos leva ao coração seco do sertão goiano, onde o calor e o silêncio pesam tanto quanto as emoções reprimidas dos homens que habitam esse mundo. Dirigido por Erico Rassi, o filme é uma releitura sensível e ao mesmo tempo brutal do faroeste, onde a violência não é apenas física, mas também emocional. Aqui, a masculinidade é exposta em toda a sua fragilidade, e os homens parecem perdidos em meio ao deserto que criaram dentro de si.

Com uma paisagem árida como pano de fundo, o filme nos mostra homens que mal conseguem trocar palavras, como se o diálogo fosse um luxo que eles não podem se permitir. A comunicação se dá através da violência, dos olhares duros e das longas pausas. As mulheres, quando desaparecem da história, deixam um vácuo, expondo o quão dependentes os homens são de suas presenças, não só pela companhia, mas pela função que exercem nas vidas práticas e emocionais deles.

O silêncio é preenchido por outra forma de expressão: a música sertaneja. A trilha sonora, repleta de canções que falam de saudade, sofrimento e amores perdidos, ecoa os sentimentos não ditos dos personagens. O sertanejo, com suas letras tristes, amplifica o peso das cenas, fazendo com que a dor desses homens seja sentida não apenas em seus gestos, mas também nas notas melódicas que enchem o ar.

Rassi, com muita sutileza, transforma o faroeste clássico em algo profundamente brasileiro, onde a bravura dos “cowboys” não esconde suas vulnerabilidades. Eles performam a virilidade para os outros, mas estão presos em suas próprias solidões, incapazes de se libertar do ciclo de violência e silêncio que os consome. O humor seco e quase invisível nas entrelinhas do filme só acentua esse contraste entre o que eles mostram e o que realmente sentem.

Em Oeste Outra Vez, a paisagem e a música são tão importantes quanto os próprios personagens. Elas contam a história de um país, de um sertão, de homens que não sabem como lidar com suas próprias dores. O resultado é um filme poético e doloroso, que ressoa profundamente, mesmo depois que os créditos sobem. Até aqui, meu filme preferido da Mostra.

Leia outras críticas de filmes da 48ª Mostra:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.