Em mais um relato da maratona que vem sendo 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, decidi juntar dois filmes diametralmente diferentes, mas que encontrei na direção de três realizadoras promissoras e histórias focadas em mulheres como um elo que as une. Os filmes Tudo Que Imaginamos Como Luz e O Banho do Diabo, trabalham com luz e sombras. Um sobre como a arte ilumina vida, já outro, como a sombra dos homens pode gerar tanto terror quanto o sobrenatural.
Tudo Que Imaginamos Como Luz
Payal Kapadia, premiada com o Grand Prix em Cannes 2024, com Tudo Que Imaginamos Como Luz, uma obra que reflete uma preocupação constante com a luz, como evidenciado em seu primeiro longa, “Uma Noite Sem Saber Nada”, que explorou a ausência de luz para expressar paixões pessoais e políticas em um estilo documental. Em seu mais recente filme, ela demonstra o poder transformador da luz do cinema, revelando como o projetor pode dar vida a ausências.
Desde o início, Kapadia estabelece o anseio — por amor e por melhores condições de vida — como tema central. O filme inicia com imagens documentais de Mumbai, acompanhadas por narrações de cartas de pessoas que se mudaram para a cidade. Logo, a trama se concentra em três enfermeiras: Prabha (Kani Kusruti), Anu (Divya Prabha) e Parvaty (Chhaya Kadam), que enfrentam seus próprios desafios na metrópole.
Prabha é uma mulher séria, cujos planos de vida são frustrados pelo abandono do marido, enquanto Anu mantém uma relação complicada com seu parceiro muçulmano, e Parvaty enfrenta a demolição de sua casa. Embora haja cenas impactantes, a força do filme reside em momentos sutis, como a reação de Prabha ao receber um novo eletrodoméstico.
No terceiro ato, o filme muda de foco, mergulhando em um misticismo rural quando Prabha salva um pescador quase afogado, que se torna um canal para uma voz que ela anseia ouvir. Esse momento alucinatório distorce a realidade, ressaltando que até as cenas mais cotidianas têm um caráter sonhador. A transição é uma evitação de realismo, similar às tendências transcendentalistas de outros cineastas asiáticos, mas com uma abordagem única.
Kapadia também faz referências que remetem a cineastas europeus, como Chantal Akerman, especialmente nas tomadas de trem que introduzem o filme. A co-produção entre França, Índia, Países Baixos e Luxemburgo, com uma equipe predominantemente francesa, confere ao filme uma estética contemporânea que pode parecer mais global do que local.
Essa abordagem não é uma crítica, mas sim um refresco. Kapadia, com sua habilidade, retrata Mumbai e seus cidadãos de maneira precisa e impressionista, combinando realismo poético com uma observação meticulosa. Sua transição estilística de uma docuficção monocromática para uma narrativa mais criativa destaca seu potencial como uma cineasta de relevância significativa no cenário internacional.
O Banho do Diabo
O Banho do Diabo exige total envolvimento do espectador, combinando intensidade primordial com uma inteligência sutil que permeia sua superfície visceral. A dupla austríaca Veronika Franz e Severin Fiala, responsável pelo ótimo “Boa Noite, Mamãe”, retorna com uma história de terror folclórico que é tanto arrebatadora quanto multicor, trazendo à tona um comentário brutal sobre a luta secular das mulheres aprisionadas na servidão doméstica.
O filme inicia com um prólogo impactante, ambientado na Áustria do século XVIII, onde uma mulher comete um ato chocante que resulta em uma punição brutal. Seu corpo se torna um símbolo de peregrinação e superstição, entrelaçando seu destino com o folclore local. Essa cena estabelece o tom sombrio que acompanhará toda a narrativa.
Após esse início, a trama se concentra no casamento entre Agnes (Anja Plaschg) e Wolf (David Scheid). A celebração é marcada por festividades, mas rapidamente se transforma em uma desilusão quando Agnes descobre que seu novo lar é uma caverna isolada na floresta, longe da comunidade que conhece. Sua noite de núpcias se revela um desastre, com indícios de um relacionamento problemático, enquanto Agnes se vê presa em uma rotina desgastante e solitária.
Conforme a história avança, Agnes busca desesperadamente um filho, acreditando que isso a salvaria de sua monotonia e solidão. Sua luta é amplificada pela rejeição de sua família e a pressão de uma sociedade que desconfia de sua capacidade de ser uma boa esposa. O filme retrata uma existência marcada pela pobreza e pela brutalidade que ainda ressoam com as lutas das mulheres contemporâneas.
Com uma estética que se distancia de thrillers vagos, O Banho do Diabo oferece uma representação visceral da vida cotidiana, refletindo um sofrimento profundo e real. A cinematografia de Martin Gschlacht utiliza iluminação sutil para criar uma atmosfera densa e opressiva, destacando a tensão do cenário rural austríaco no século XVIII. Já Franz e Fiala mergulham em um território mais primal, utilizando um design de produção meticuloso e desconfortavelmente envolvente, que criam uma atmosfera densa.
O Banho do Diabo se destaca como uma obra que não apenas cativa, mas também provoca uma reflexão crítica sobre a condição feminina, deixando claro que os horrores retratados estão interligados às realidades que muitas mulheres ainda enfrentam hoje. O horror, aqui não é sobrenatural, pelo contrário, ele pode dormir ao seu lado.
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