Uma das minhas maiores diversões durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é escolher filmes às cegas, guiado só pelo título ou pelo horário conveniente. É um prazer meio aleatório, quase esportivo, que às vezes leva a descobertas improváveis – e foi assim que encontrei três obras que, mesmo vindas de lugares e linguagens tão diferentes, parecem conversar entre si.
Irmãos Versos Irmãos, Melhor Enlouquecer na Natureza e Galinha falam, cada um à sua maneira, sobre laços e isolamento, sobre a tentativa de seguir vivos em meio ao absurdo. São filmes sinceros, esquisitos e profundamente humanos, que preferem observar em vez de explicar.
Irmãos Versos Irmãos

Irmãos Versos Irmãos é um desses filmes que não inventam nada novo, mas lembram o espectador de que o cinema, quando é sincero, ainda pode ser uma experiência profundamente envolvente. Ari Gold conduz sua história como quem abre um diário familiar e convida o público a folhear junto. O longa, filmado em um único plano-sequência de 91 minutos, acompanha dois irmãos músicos caminhando pelas ladeiras de São Francisco, transformando a cidade num organismo vivo que interfere e respira junto com eles. A câmera, sempre em movimento, não apenas segue os personagens – ela parece tropeçar com eles, vibrar ao som das cordas, hesitar nas pausas silenciosas.
Tecnicamente, há algo de fascinante nesse falso despojamento. A fluidez do take contínuo exige uma coreografia precisa, quase invisível, que cria a ilusão de espontaneidade. O som, tratado com uma delicadeza admirável, guia o olhar mais do que a própria imagem. Entre ruídos de rua e vozes cruzadas, a mixagem nos leva a escutar o que importa, como se o filme sussurrasse o que devemos sentir sem precisar nos dizer. As canções, simples e repetitivas, são o coração da narrativa – não comentários sobre o que acontece, mas extensões das emoções que os personagens não conseguem verbalizar.
Há algo de caseiro, até despretensioso, na maneira como Gold filma o irmão Ethan, e é justamente aí que mora a graça. A improvisação, os pequenos tropeços e o humor quase involuntário conferem ao filme um frescor raro. A relação dos irmãos, permeada por afeto e frustração, se revela em gestos sutis; o olhar desviado, o silêncio incômodo, o toque que demora a acontecer. E o pai ausente paira como uma sombra terna sobre tudo, dando ao passeio musical um tom de despedida.
Irmãos Versos Irmãos pode soar como um exercício estético já visto, mas há uma autenticidade ali que desarma. O filme vibra em sua melancolia, mas nunca se entrega à tristeza. É leve, íntimo e honesto o suficiente para nos lembrar que às vezes o mais revolucionário é apenas deixar a vida acontecer diante da câmera.
Melhor Enlouquecer na Natureza

“Melhor Enlouquecer na Natureza é um daqueles filmes que parecem saídos de um devaneio; absurdos, terrosos, mas profundamente humanos. O diretor eslovaco Miro Remo acompanha dois irmãos gêmeos que vivem isolados nas florestas de Šumava, na fronteira da República Tcheca, e constrói um retrato tão excêntrico quanto afetuoso dessa convivência fora do mundo. Barbudos, ásperos e quase míticos, František e Ondřej Klišík são dois homens que vivem entre vacas, cães e árvores, discutindo filosofia, brigando, bebendo e rindo como se o tempo tivesse parado.
A força do filme está justamente nessa sensação de suspensão – de não sabermos se estamos vendo um documentário ou um sonho. Remo mistura o real e o poético com um humor seco, quase involuntário, que nasce da convivência entre o sublime e o grotesco. Há uma vaca que narra partes da história, espelhando o tom mágico e debochado do longa, mas o encanto está mesmo no olhar paciente da câmera, que prefere observar a rotina dos irmãos sem qualquer julgamento. A montagem brinca com o ritmo, alternando silêncios contemplativos e explosões de riso, como se a própria natureza ditasse o tempo do filme.
A fotografia de Dušan Husár transforma a floresta em personagem, capturando a luz fria e os reflexos de um espelho que, levado pelos irmãos, parece devolvê-los ao mundo que escolheram abandonar. O som – dos pássaros, da madeira rangendo, do vento atravessando os diálogos – dá corpo ao isolamento, enquanto a montagem revela, aos poucos, a cumplicidade entre eles e o peso silencioso de saber que um dia um ficará sozinho.
O humor do filme é seu segredo, ele não nasce da piada, mas da ternura. Ver esses dois homens envelhecendo juntos, ora nus no meio do mato, ora discutindo sobre a morte, é rir e se comover com a estranheza da própria existência. Melhor Enlouquecer na Natureza é um filme sobre o prazer de observar o mundo sem pressa, sobre rir do absurdo de estar vivo, e, acima de tudo, sobre a coragem de simplesmente ser.
Galinha

Galinha, novo filme do diretor húngaro György Pálfi, assume literalmente o ponto de vista de uma galinha, transformando o absurdo em poesia visual. O resultado é uma tragicomédia feroz, um “road movie existencialista” que mistura sátira, drama animal e fábula filosófica com uma naturalidade desconcertante.
Filmada com uma precisão quase coreográfica, a câmera de Pálfi – aliada à fotografia sensorial – mergulha no olhar da protagonista emplumada, interpretada por oito diferentes galinhas que parecem carregar uma alma única. O trabalho de som é essencial para essa imersão: cada cacarejo, cada ruído metálico da granja, ganha textura emocional. Há momentos em que o filme parece ecoar “EO”, de Jerzy Skolimowski, mas Pálfi troca a contemplação melancólica pelo caos vital, pela confusão tragicômica de um ser que, mesmo sem entender o mundo, insiste em atravessá-lo.
O humor, aqui, é o disfarce de algo mais profundo. Entre um ataque de ciúmes e uma fuga surreal, a “galinha” se torna símbolo de um corpo explorado – pelo sistema de produção, pela brutalidade masculina, pela indiferença humana. E quando o roteiro entrelaça sua trajetória com a de imigrantes sendo traficados por criminosos, o grotesco ganha peso político. A sequência em que o ovo da protagonista bloqueia o ventilador de um caminhão de contrabando é de uma crueldade poética absurdista.
Mesmo com todo o absurdo, o filme nunca perde sua ternura. A galinha ama, sofre, observa – e, de alguma forma, compreende. Há uma beleza perversa em ver o instinto animal refletir a falência moral humana. Pálfi faz rir e, no instante seguinte, desconcerta. Galinha é um grito travestido de cacarejo, um filme que desafia o espectador a rir do ridículo da própria existência – e, quem sabe, se emocionar com isso.
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