Em maio de 2024, o CEO da OpenAI, Sam Altman, causou uma tempestade ao fazer referência ao filme “Ela” (“Spike Jonze”), de 2013, para destacar a novidade da última iteração do ChatGPT.
Em poucos dias, a atriz Scarlett Johansson, que interpretou a voz de Samantha, a namorada IA do protagonista (Joaquin Phoenix) no filme, acusou a empresa de usar indevidamente sua voz depois de ter recusado a oferta para ser a voz da nova assistente virtual do ChatGPT. Johansson acabou processando a OpenAI e foi convidada a testemunhar no Congresso.
Essa disputa destaca uma troca mais ampla entre Hollywood e o Vale do Silício, chamada – pela imprensa especializada em tecnologia dos Estados Unidos (EUA) – de “ciclo de feedback sci-fi”.
O ciclo de feedback sci-fi explora como a ficção científica e a inovação tecnológica se alimentam mutuamente. Essa dinâmica é bidirecional e pode, às vezes, se desenrolar ao longo de muitas décadas, resultando em um ciclo contínuo.
A ficção desperta sonhos de viagens à Lua
Um dos exemplos mais famosos desse ciclo é a viagem à Lua. O romance de 1865 de Jules Verne, “Da Terra à Lua”, e a ficção de H.G. Wells inspiraram um dos primeiros filmes a visualizar tal jornada: “Viagem à Lua” (Georges Méliès), de 1902.
A ficção de Verne e Wells também influenciou futuros cientistas de foguetes como Robert Goddard, Hermann Oberth e o mais conhecido pupilo de Oberth, Wernher von Braun. As inovações desses homens – incluindo o foguete V-2 construído por von Braun durante a Segunda Guerra Mundial – inspiraram obras de ficção científica, como o filme “Destino: Lua” (Irving Pichel), de 1950 que incluía um foguete que parecia exatamente com o V-2.
Filmes como “Destino: Lua” acabaram por aumentar o apoio público aos gastos governamentais com o programa espacial.
Simbiose criativa
O ciclo de feedback sci-fi geralmente segue o mesmo ciclo. Primeiro, o clima tecnológico de uma determinada era molda a ficção científica desse período. Por exemplo, a revolução da computação pessoal das décadas de 1970 e 1980 inspirou diretamente as obras dos escritores cyberpunk Neal Stephenson e William Gibson.
Da mesma forma, a ficção científica em ascensão inspira a inovação tecnológica do mundo real. Em seu clássico de 1992, “Nevasca”, Stephenson cunhou o termo “metaverso” para descrever um mundo 3D, semelhante a um videogame, acessado por meio de óculos de realidade virtual.
Empreendedores e inovadores do Vale do Silício têm tentado construir uma versão desse metaverso desde então. O mundo virtual do videogame Second Life, lançado em 2003, tentou isso: jogadores viviam em casas virtuais, iam a clubes de dança e shows virtuais com namoradas e namorados virtuais, e até recebiam dinheiros virtuais por aparecerem em empregos virtuais.
Essa tecnologia gerou ainda mais ficção: em minha pesquisa, descobri que o romancista de ficção científica Ernest Cline passou muito tempo jogando Second Life, e isso inspirou o metaverso de seu romance bestseller “Jogador Número 1”.
O ciclo continuou: funcionários da Oculus VR – agora conhecida como Meta Reality Labs – receberam cópias de “Jogador Número 1” para lerem enquanto desenvolviam os headsets de realidade virtual da empresa. Quando o Facebook mudou seu nome para Meta em 2021, fez isso na esperança de estar na vanguarda da construção do metaverso, embora as grandes ambições da empresa tenham sido um tanto moderadas.
Outra franquia de ficção científica que tem suas impressões digitais por todo esse ciclo é “Star Trek”, que foi ao ar pela primeira vez em 1966, bem no meio da corrida espacial.
Steve Perlman, o inventor do formato e player de mídia QuickTime da Apple, disse que foi inspirado por um episódio de “Star Trek: Nova Geração”, no qual o Tenente Comandante Data, um androide, analisa múltiplos fluxos de arquivos de áudio e vídeo. E Rob Haitani, o designer do sistema operacional do Palm Pilot, disse que a ponte da Enterprise influenciou sua interface.
Em minha pesquisa, também descobri que o Holodeck – uma sala que podia simular qualquer ambiente – influenciou tanto o nome quanto o desenvolvimento dos óculos de realidade aumentada HoloLens, da Microsoft.
O que nos leva de volta à OpenAI e “Ela”
No filme, o protagonista, Theodore (Phoenix), adquire uma assistente IA, “Samantha”, dublada por Johansson. Ele começa a desenvolver sentimentos por Samantha – tanto que começa a considerá-la sua namorada.
O ChatGPT-4o, a versão mais recente do software de IA generativa, parece ser capaz de cultivar uma relação semelhante entre usuário e máquina. Não só o ChatGPT-4o pode falar com você e “entender” você, mas também pode fazê-lo de forma simpática, como um parceiro romântico faria.
Não há dúvidas de que a representação da IA em Ela influenciou os desenvolvedores da OpenAI. Além do tweet de Altman, os vídeos promocionais da empresa para o ChatGPT-4o apresentam um chatbot conversando com um candidato a emprego antes de sua entrevista, incentivando-o e encorajando-o – como, bem, uma namorada IA faria. A IA apresentada nos clipes, observou a Ars Technica, era “desarmantemente realista” e estava disposta “a rir das suas piadas e do seu chapéu bobo”.
Mas você pode se surpreender ao saber que uma geração anterior de chatbots inspirou Spike Jonze, o diretor e roteirista de Ela”, a escrever o roteiro em primeiro lugar. Quase uma década antes do lançamento do filme, Jonze havia interagido com uma versão do chatbot ALICE, que foi um dos primeiros chatbots a ter uma personalidade definida – no caso de ALICE, a de uma jovem mulher.
O chatbot ALICE ganhou o Prêmio Loebner três vezes, que foi concedido anualmente até 2019 ao software de IA que chegasse mais perto de passar no Teste de Turing, amplamente visto como um limiar para determinar se a inteligência artificial se tornou indistinguível da inteligência humana.
O ciclo de feedback sci-fi não tem data de validade. A capacidade da IA de formar relacionamentos com humanos é um tema que continua a ser explorado na ficção e na vida real.
Alguns anos após Ela, “Blade Runner 2049” apresentou uma namorada virtual, Joi (Ana de Armas), com um corpo holográfico. Bem antes do último drama com a OpenAI, empresas já haviam começado a desenvolver e lançar namoradas virtuais, um processo que sem dúvida continuará. Como escreveu o escritor de ficção científica e crítico de mídia social Cory Doctorow em 2017, “a ficção científica faz algo melhor do que prever o futuro: ela o influencia.”
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