Crítica | Grande Sertão seria perfeito se 'destruísse' o livro

Crítica | Se ‘destruísse’ o livro, Grande Sertão seria marcante

Riobaldo (Caio Blat) conta sua história. Quando era jovem, no cenário urbano do Sertão brasileiro, ele se aproxima de Diadorim, um garoto destemido de sua idade, que lhe ensina a escalar torres brutalistas e a afugentar adultos predadores com um eficaz golpe de faca. Grande Sertão, novo filme de Guel Arraes (“O Auto da Compadecida”), com roteiro do mesmo ao lado do parceiro de longa Jorge Furtado (“O Homem que Copiava”), tem a ingrata missão de adaptar um dos livros mais icônicos da nossa literatura. Curiosamente, a dupla aposta em uma abordagem ousada, mas é justamente por causa dela que esse sertão acaba nunca sendo totalmente ocupado.

Delimitando espaços

Quando Riobaldo cresce e se torna professor, essa selva de concreto se transforma em um campo de batalha entre uma gangue liderada pelo criminoso local Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) e as forças comandadas pelo Coronel Zé Bebelo (Luis Miranda), determinadas a restaurar a lei e a ordem no país. Ambos os líderes podem até negociar com violência, mas são homens honrados. O mesmo não pode ser dito de um dos tenentes de Joca, Hermógenes (interpretado com grande entusiasmo pelo insinuante Eduardo Sterblitch), uma força da natureza aparentemente imparável que vendeu sua alma ao diabo para alcançar seus objetivos. Os ideais educacionais de Riobaldo e sua esperança para o futuro do país são destruídos pela morte sem sentido de uma aluna exemplar, que é pega e morta no fogo cruzado de uma briga de rua entre a gangue e facções militares rivais.

Crítica | Grande Sertão seria perfeito se 'destruísse' o livro

Em contraste com o caminho de Riobaldo, conhecemos uma versão adulta de Diadorim (Luisa Arraes, filha do diretor), que se torna um combatente na gangue de Joca: o tipo de lutador que vence vários oponentes um após o outro em uma sequência que deixará os fãs de ação em êxtase. Luisa, pelo menos no figurino, penteado e maquiagem apresentados aqui, se parece, visualmente, andrógino, que poderia passar por homem ou mulher, uma característica compartilhada pelo ator mirim que interpreta sua versão jovem. Sinceramente, depois de um tempo, você esquece disso e começa a perceber a personagem como masculino.

O que se segue é, em um nível macro, a história de dois grupos em guerra entre si, com estruturas de poder constantemente mudando e se entrelaçando dentro e entre eles, e em um nível micro, a história de Riobaldo e Diadorim, que por sua própria natureza também se dá a mudanças e entrelaçamentos.

Uma mistura de bons – e confusos – elementos

Em primeiro caso, pode-se imaginar que a ideia basilar dessa versão de Grande Sertão seria o tipo de coisa que Shakespeare escreveria, com sua atenção aos detalhes dos personagens que informam as lutas de poder – e há muito tempo suspeito que, se ele tivesse nascido nos tempos modernos, estaria não só escrevendo, mas também dirigindo filmes. Da mesma forma, isso se encaixaria bem ao lado do modo samurai feudal de Akira Kurosawa – pense em “Trono Manchado de Sangue” ou “Ran” – ambos enredos de Shakespeare. Por outro lado também tem um pouco de “Romeu + Julieta” de Baz Luhrmann, que reformulou a guerra de duas famílias com muitos tiroteios no melhor estilo John Woo. Visualmente, faz referências a filmes futuristas e/ou de gangues de motociclistas, embora não haja muitos elementos, tanto de um, quanto de outro.

Crítica | Grande Sertão seria perfeito se 'destruísse' o livro

Apesar disso tudo que disse, Grande Sertão, mesmo flertando com uma linguagem pop, ele é um filme que está no meio desse caminho. Se a câmera de Arraes diz uma coisa, o roteiro – que faz seus personagens recitarem os diálogos tirados diretamente do livro, causando uma estranheza que até seria boa se fosse ainda mais ousada.

Digo isso porque há uma cena, por exemplo, que adapta o texto de Guimarães Rosa para uma espécie de rap. Esse tipo de adaptação casa melhor com a ideia de deturpar uma história, classicamente Shakespeariana, que se diferencia por falar com o sertanejo mineiro.

Crítica | Grande Sertão seria perfeito se 'destruísse' o livro

Vale lembrar que o livro, “Grande Sertão: Veredas” de João Guimarães Rosa, que já foi filmado em 1965 usando o ambiente de faroeste, muito mais próximo do cenário rural do romance original. No entanto, além de moroso, acabou criando a lenda que esse filme seria inadaptável. Bom, Arraes e Furtado até tiveram boas ideias e ousaram, mas na hora de “destruir” com a obra original faltou coragem.

A história de Riobaldo e Diadorim é parte filme de amigos, parte romance e parte história de amor não correspondido, muitas vezes com fortes nuances homoeróticas. Pode-se argumentar que tudo isso se parece muito com “Romeu e Julieta” de Shakespeare, exceto pelo – bastante significativo – fato de que os dois amantes estão do mesmo lado do conflito. Novamente, Grande Sertão é bom por ser ousado, mas poderia ser extraordinário se fosse tão louco quanto Hermógenes.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.