Crítica | Pedaço de Mim: Novela na Netflix dá certo?
(Foto: Netflix/Divulgação)

Crítica | Pedaço de Mim: Novela na Netflix dá certo?

Há 15 anos, em 2008, Mia Washington deu à luz gêmeos de pais diferentes após ter relações íntimas com dois homens em um intervalo de cinco dias. O pai, James Harrison, solicitou um teste de paternidade ao perceber que os irmãos não se pareciam. Apesar da descoberta, a família optou por permanecer unida, e James afirmou que amava igualmente os meninos. Casos como esse são extremamente raros. Segundo um artigo de Haleh Cohn no site da Universidade McGill, em 2020, apenas 19 casos de superfecundação heteropaterna foram documentados em todo o mundo.  O caso de Mia Washington, mencionado pelo USA Today, exemplifica esse fenômeno: estudos indicam que entre 1 a 2% dos gêmeos fraternos podem ter pais diferentes.

Angela Chaves se inspirou nesse caso ao criar sua nova série de sucesso da Netflix. “Pedaço de Mim” narra a trajetória de Liana, uma mulher que sonha em ser mãe, mas sua vida é virada de cabeça para baixo após descobrir a infidelidade do marido. A série explora o fenômeno da superfecundação heteroparental, onde Liana engravida de dois homens diferentes ao mesmo tempo. Esse tema inusitado é um prato cheio para a exploração dramática e emocional, algo que a produção faz com maestria.

Juliana Paes (Liana) e Vladimir Brichta (Tomás) são grandes razões para o público se sentir “em casa” de cara. O texto bem construído leva a assinatura de Angela Chaves — autora que tem no currículo “Éramos Seis” e “Os Dias Eram Assim”. A direção artística é do competentíssimo Maurício Farias, conhecido por trabalhos como “A Grande Família” e, mais recentemente, “Um Lugar ao Sol”. Além dos citados, o elenco conta com Palomma Duarte, Jussara Freira, João Vitti, Martha Nowill e Antônio Grassi.

É série ou novela?

A pergunta mais comum que vi sobre Pedaço de Mim é: “É uma novela?” Com apenas 17 capítulos, ela foge do rótulo tradicional de novela, mas os fortes conflitos morais e a maneira como são abordados lembram bastante esse formato. Além disso, incorpora elementos clássicos das séries, como teasers antes da exibição do título e um número reduzido de personagens.

Pedaço de Mim une o melhor dos dois mundos: um drama interessante, elenco de alto padrão, ótimo texto e ganchos instigantes ao final de cada capítulo. No entanto, ao final acabamos pensando, será que conseguiu sustentar tudo isso? 

O elenco é compacto, atendendo a um enredo concentrado, sem as inúmeras subtramas que costumam puxar os folhetins tradicionais. Os poucos episódios fazem total sentido, sendo um ponto a ser celebrado.

Personagens interessantes e atuações marcantes

Os primeiros episódios, com a construção dos personagens principais, são um dos trunfos da série. Juliana Paes e Vladimir Brichta entregam performances intensas e convincentes, que sustentam a série. Juliana Paes, em particular, entrega uma de suas melhores atuações, mas enfrenta as falhas de roteiro que se sucedem. Vladimir Brichta também se destaca, mas sofre com a inconsistência de seu personagem, que com a sua virada de personalidade nos últimos episódios é sentido pelo espectador como algo estranho.

A impressão é de que os três primeiros episodios de Pedaço de Mim foram filmados com o tempo de produção de uma novela, mas depois tiveram que condensar muitos acontecimentos nos episódios seguintes, esvaziando o impacto de cada reviravolta. Conforme os gêmeos crescem, a trama acelera e se torna superficial. Os últimos episódios parecem forçados e repetitivos, sem resolver as questões existentes e introduzindo novas que não são tão interessantes.

A qualidade do texto começa a perder força justamente quando a história se torna mais complexa. Os atores da terceira parte da série, que interpretam os gêmeos de Liana, Marcos e Mateus, são fracos. Em especial, o intérprete de Marcos precisava ser melhor preparado para um papel tão denso. A escolha de elenco poderia ter sido mais criteriosa, considerando os muitos bons atores jovens disponíveis no Brasil. 

Um destaque positivo é Palomma Duarte e João Vitti que formam um casal adorável como Silvia e Vicente, salvando a produção da obscuridade do próprio enredo, entregando romance e sensatez. Esse núcleo passa ileso pelos problemas de texto da minissérie, em grande parte porque não há desnivelamento de interpretações. Porém, é um pouco irreal Vicente esperar 18 anos para Silvia finalmente aceitar fazer uma viagem com esse, podemos dizer que é um casamento bem paciente. A direção de Maurício Farias também merece elogios pela maneira como conduz a narrativa, mantendo o público envolvido do começo ao fim.

Seria essa uma nova era do audiovisual brasileiro?

“Pedaço de Mim” aborda assuntos sombrios e provocativos, mas parece não considerar adequadamente todas as suas implicações. O tempo de duração é preenchido com uma série de conexões e coincidências estranhas. Com tantos episódios, há uma necessidade de preenchimento, e o enredo principal raramente é suficiente para sustentar tudo. Porém, a série conta com um enredo central que precisa ser navegado com certo grau de sensibilidade e nuance necessários para evitar parecer explorador e irresponsável.

De qualquer maneira, a trama reflete um novo momento do mercado audiovisual. Profissionais estão transitando pelas diversas plataformas, e velhos hábitos do público são subvertidos constantemente. A série deixa uma lição importante: é preciso ter boas ideias. Infelizmente, os problemas de texto assombram a teledramaturgia, mesmo no streaming. No entanto, o sucesso da minissérie representa a exigência do público por histórias ousadas, cheias de bons embates e bons elencos. A originalidade é a chave, e o público está cansado de remakes, crossovers e spin-offs.

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