Publicada originalmente entre 2004 a 2010, a série de histórias em quadrinhos Scott Pilgrim foi um fenômeno. Escrito e desenhado por Bryan Lee O’Malley, o quadrinho começou como um típico romance de maioridade. Evoluiu para uma sátira da cultura gamer. Sua conclusão foi uma surpreendentemente e sofisticada história sobre maturidade, composta personagens extremamente carismáticos e falhos.
Em parelelo a conclusão dos quadrinhos, o filme de 2010, “Scott Pilgrim Contra o Mundo”, ofereceu uma adaptação bastante precisa, no entato, um tanto superficial, da obra original. Embora o filme tenha fracassado nas bilheterias, em pouco tempo ele se tornou um cult indie. Isso se deve em parte aos quadrinhos e em parte ao elenco, que contou com uma série de atores que se tornaram muito mais famosos por outros trabalhos desde então. Por falar nesses astros, quase todos esses atores voltaram para dublar seus personagens originais na adaptação do animada, Scott Pilgrim A Série.
Pergunto-me como a Netflix conseguiu fazer com que Brie Larson, Chris Evans, Aubrey Plaza e Anna Kendrick retornassem a papéis relativamente menores. Alguém também pode se perguntar como, mesmo com o enorme culto inspirado por Scott Pilgrim, a Netflix poderia justificar refazer uma história que já foi adaptada para o cinema live-action, jogo de tabuleiro e videogames?
A resposta é que Bryan Lee O’Malley – com o co-roteirista BenDavid Grabinski – foi além do material original para contar uma história inteiramente nova com os mesmos amados personagens. Ao fazer isso, ele foi aos bastidores, desenvolvendo os vilões de uma só nota e o elenco de apoio dos quadrinhos originais em personagens mais completos. Podemos ver os bastidores da Liga dos Ex do Mal, bem como uma nova perspectiva da narrativa principal, que ganha um novo objetivo, se compado tanto com o filme, como no quadrinho ou no jogo.
Uma nova fase
Essa nova história, que pode tanto ser lida como uma versão alternativa, bem como uma continuação, coloca Ramona Flowers como uma espécie de co-protagonista, além de beneficiar outros personagens menos explorados desde então, em especial os ex do mal da garota de cabelo colorido – o tentador teatral Matthew Patel (Satya Bhabha), o astro de cinema Lucas Lee (Chris Evans), o deus do rock vegano Todd Ingram (Brandon Routh), a gótica hiperativa Roxie Richter (Mae Whitman) e os gêmeos gênios da tecnologia Kyle e Ken Katayanagi (Julian Cihi).
A nova série inclui a maioria dos ingredientes esperados, mas os utiliza de maneiras inesperadas. Fiel ao ritmo dos quadrinho e do filme, cada capítulo ainda inclui uma sequência de luta imaginativa e divertida que mistura conceitos de videogame com outros truques apropriados para cada combatente – como um combate dentro de uma locadora de filmes – . Há também uma série de músicas originais de Anamanaguchi, a banda de rock chiptune que fez a aclamada trilha sonora de “Scott Pilgrim Contra o Mundo: O Jogo”.
Nova história, mesmos temas
Apesar de contar uma história diferente, essa animação é uma peça natural que acompanha as histórias em quadrinhos de O’Malley, abordando grande parte do mesmo material temático, no entanto, em um novo ângulo. No material original, Scott Pilgrim é um protagonista profundamente imperfeito que confundiu sua própria negligência com uma ingenuidade cativante. Ele está convencido de que é o personagem principal, o herói encantador, e o texto original trata de quebrar gradativamente essa ilusão e forçá-lo a enfrentar as consequências de seu egoísmo.
Scott Pilgrim: A Série coloca a personalidade de “garota descolada” de Ramona sob o mesmo prisma – algo que o filme de Wright não tem tempo para fazer – e revela como, no fundo, ela e Scott não são tão diferentes assim. A série também tem ares de autocrítica; como co-escritor, O’Malley (com BenDavid Grabinski) parece lidar com o quanto ele próprio cresceu ou não nos 13 anos desde que publicou o último capítulo da história em quadrinhos. Quanto uma pessoa pode realmente mudar, mesmo sabendo o que fez de errado? Estamos condenados a repetir nossos erros?
Dito isto, Scott Pilgrim A Série traz exatamente o mesmo charme do jogo, quadrinhos e do filme. Esse mérito se dá, em grande parte, graças à reunião do elenco e dos criadores que moldaram os quadrinhos e o filme anos atrás. O conjunto de dubladores, reprisando seus mesmos papéis como se nunca tivessem saído deles, enquanto o roteiro e a animação trazem de volta todos os motivos pelos quais essa obra funcionam tanto no audiovisual.
Aliás, neste último aspecto, não dá para esquecer de mencionar o trabalho do estúdio japonês Science SARU, responsável por incríveis sequências que só são possíveis nesse formato – entre tantas, destaco uma cena de ação envolvendo Lucas Lee fugindo de ninjas com seu skate -, que foi comandado por Abel Góngora (“Star Wars: Visions”) na direção de todos os episódios.
Uma obra só para iniciados?
Tal como acontece com tantos lançamentos recentes de franquias, Scott Pilgrim A Série sofre de uma certa indiferença em abraçar novos espectadores. É possível que um novato comece pela animação sem qualquer familiaridade com o texto original e ainda assim se divirta, mas certamente ficará um sentimento que falta algo, bem como essa obra foi feita para alguém que, pelo menos, tenha assistido o filme.
A versão animada de Scott Pilgrim é uma pegadinha bem-humorada feita para a sua base de fãs, cuja disposição de entreter uma nova iteração do mesmo produto é recompensada com algo mais emocionante. Se isso deve ser considerado uma fraqueza está em debate. Afinal, será que alguns espectadores, antigos ou novos, teriam preferido uma adaptação direta em anime da história em quadrinhos? Possivelmente, mas agora, após a conclusão desta mini-série, parece claro que fazê-lo iria contra o que Bryan Lee O’Malley quer dizer com o seu trabalho: que a reflexão é apenas parte do progresso. Se você quiser seguir em frente, terá que fazer as coisas de maneira diferente.
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