Não é a primeira vez que escrevo sobre obras em que homens refletem problemas com sua masculinidade. Na verdade, isso foi tema de outro compilado de filmes que vi na 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no caso de The Surfer e Oeste Outra vez. Pois bem, chego com mais dois filmes vindos diretos da “coitadolândia”, Barba Ensopada de Sangue e Pequenas Coisas Como Estas, onde homens precisam se provar – pra quem? – para superar traumas do passado.
Pequenas Coisas Como Estas
Pequenas Coisas Como Estas, dirigido por Tim Mielants, apresenta uma abordagem sensível sobre um dos capítulos mais sombrios da história irlandesa: as Lavanderias Magdalene. A narrativa, baseada no aclamado livro de Claire Keegan, segue Bill Furlong (Cillian Murphy), um comerciante de carvão que, ao realizar suas rotinas na cidade de New Ross, é confrontado com a dura realidade das jovens internadas no convento local. Embora o filme traga atuações marcantes e uma estética propositalmente decadente, ele enfrenta desafios em equilibrar a profundidade narrativa com um desenvolvimento coerente.
Um dos aspectos mais notáveis do filme é a atuação de Cillian Murphy, que entrega uma performance sutil e introspectiva. Seu Bill é um personagem silencioso, e a habilidade de Murphy em transmitir emoções por meio de expressões faciais e gestos sutis é impressionante. No entanto, a construção do personagem acaba sendo comprometida pela estrutura narrativa fragmentada. A primeira metade do filme se concentra em sua vida familiar e nos efeitos de sua crescente inquietação, mas esse enfoque muitas vezes desvia a atenção da temática central, tornando-se repetitivo e arrastado. Bill deveria ser a ponte, não o centro.
A cinematografia, assinada por Frank van den Eeden, é outro ponto forte do filme. Ela é atmosférica, que alterna entre a luminosidade do dia e as sombras da noite, cria uma ambientação rica que reflete o estado emocional de Bill e a opressão da sociedade em que ele vive. No entanto, essa estética visual de qualidade não é suficiente para compensar a falta de uma narrativa coesa.
Os flashbacks da juventude de Bill, introduzidos de maneira fragmentada e muitas vezes confusa, dificultam a conexão emocional do público com sua trajetória. Parece que tudo que construiu – incluindo uma numerosa família – fosse insuficiente para cicatrizar um trauma do passado.
O confronto entre Bill e a madre superiora, Irmã Mary (Emily Watson), é um momento culminante do filme. A tensão dessa cena é palpável, e a atuação de Watson, que transmite uma mistura de autoridade e ameaça, se destaca. A forma como a cena é construída, com diálogos incisivos e um crescendo emocional, revela o potencial dramático que o filme poderia explorar mais amplamente.
Pequenas Coisas Como Estas é uma obra que, embora repleta de performances competentes e uma estética visual impressionante, não consegue atingir seu potencial narrativo. A dificuldade em equilibrar o desenvolvimento de personagens com uma narrativa coesa resulta em uma experiência que, embora importante, carece de impacto emocional. O filme se propõe a refletir sobre uma sociedade que prefere ignorar injustiças, mas acaba se perdendo em sua própria sutileza, deixando uma sensação de frustração e um convite à reflexão sobre o que poderia ter sido uma história verdadeiramente poderosa. Talvez eu vá ler o livro.
Barba Ensopada de Sangue
Barba Ensopada de Sangue, dirigido por Aly Muritiba e baseado no livro homônimo de Daniel Galera, apresenta uma narrativa que mistura elementos concretos e metafísicos na pequena cidade de Armação, em Santa Catarina. O filme segue Gabriel (Gabriel Leone), que, após a morte do pai, viaja para descobrir a verdade sobre o desaparecimento de seu avô, um personagem odiado pela comunidade local, quase folclórico. A obra explora os fantasmas do passado, mas acaba se perdendo em uma narrativa cansativa.
A história é inicialmente estabelecida em torno da caça às baleias na região, revelando o passado sombrio do avô de Gabriel, o Gaudério. No entanto, a conexão entre Gabriel e seu avô permanece fraca, com o filme se desviando para os traumas pessoais do protagonista, suas decepções amorosas e uma relação com Jasmine (Thainá Duarte), que não consegue criar a tensão esperada. Essa dispersão narrativa impede que o público se envolva emocionalmente com os personagens.
Embora Muritiba mostre habilidade em criar um ambiente sombrio e tenso, o filme não consegue manter um progresso narrativo claro. Os elementos que deveriam intensificar o drama, como a antiga fábrica, acabam se tornando pontes fracas que não se conectam adequadamente à história principal. A narrativa oscila entre promessas de tragédias e relações mal desenvolvidas, deixando uma sensação de superficialidade.
A fotografia de Inti Briones, que capta a dualidade entre luz e sombra, é um dos pontos positivos do filme, mas não é suficiente para resgatar a trama da falta de direção. Gabriel Leone, no papel principal, entrega uma performance intensa, mas a história se mostra vacilante e fragmentada, dificultando a imersão do espectador na trama. O filme parece, assim, uma série de blocos desconexos, que não se juntam de maneira satisfatória.
Apesar da temática envolvente e da riqueza potencial da narrativa, Barba Ensopada de Sangue termina por não alcançar suas ambições dramáticas. A busca por complexidade e profundidade emocional não se concretiza, deixando uma impressão de potencial não realizado. O desfecho do filme é uma culminação de suas fragilidades, onde a sensação de tragédia se perde em um desenvolvimento disperso.
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