Crítica | Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal
A24/Divulgação

Crítica | Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal: um álbum de memórias audiovisual

Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal, longa-metragem de estreia de Raven Jackson, é uma obra singular, que transcende os limites tradicionais do cinema narrativo mais comercial – mesmo tratando-se de uma produção da A24. Situado no Mississippi, o filme é uma homenagem lírica à vida negra no interior do Sul dos Estados Unidos, contado através da trajetória de Mackenzie — interpretada por Mylee ShannonKaylee Nicole JohnsonCharleen McClure e Zainab Jah —, desde a infância até a vida adulta.

Jackson utiliza um estilo contemplativo para construir uma narrativa não linear, que se desdobra como um álbum de memórias. Com poucos diálogos, sua abordagem enfatiza texturas sensoriais, sons da natureza e imagens potentes. A diretora, também fotógrafa e poetisa, demonstra seus outros dotes ao capturar emoções e experiências universais por meio de detalhes específicos. A cinematografia de Jomo Wray complementa a direção, criando uma atmosfera rica que transporta o espectador para a vida pastoral do Sul dos Estados Unidos.

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Desde os momentos iniciais, o filme submerge o público em seu ritmo sereno e em uma sonoridade cuidadosamente elaborada. A interação entre os personagens é profundamente expressiva, destacando o uso do toque como linguagem emocional. Essa escolha narrativa é evidente em cenas como o abraço prolongado de Mackenzie e Wood, que encapsula a força das conexões humanas, e na dança silenciosa de seus pais, Isaiah (Chris Chalk) e Evelyn (Sheila Atim), que expressa amor e devoção sem palavras.

As escolhas de roupas, frequentemente compostas por tecidos naturais e tons terrosos, conectam os personagens à paisagem ao seu redor, refletindo uma relação simbiótica com o ambiente. O figurino não é apenas uma representação da época ou da classe social, mas uma extensão do estado emocional e das memórias dos personagens.

As cores no figurino do filme trazem uma poética visual que complementa a narrativa introspectiva. Tons como o marrom, o bege e o laranja evocam terra, calor e permanência, enquanto nuances de azul e cinza introduzem melancolia e introspecção. Essa paleta cria uma dança emocional entre os personagens e o cenário, reforçando a ideia de que o ambiente molda a identidade. Mais do que ilustrar, o figurino amplifica o significado metafórico do filme, ajudando a transformar cada interação em um gesto poético e sensorial, onde as cores e texturas contam histórias não ditas.

Os elementos visuais do filme são marcantes e repletos de significado. Cada quadro parece cuidadosamente composto para evocar sensações de intimidade e ancestralidade. Desde as tranças decoradas de Mackenzie na infância, até os gestos de carinho que permeiam sua vida, Jackson explora como pequenas ações e momentos cotidianos podem carregar grande profundidade emocional. O uso do som, como o trinado de insetos e o canto de pássaros, intensifica a sensação de pertencimento à terra e ao passado.

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Outro aspecto notável é a representação da comunidade negra, especialmente de meninas e mulheres de pele retinta, como profundamente amadas e valorizadas. Essa visão contrasta com narrativas comuns que frequentemente negligenciam essas experiências. A presença de tradições e práticas culturais, como a geofagia — o ato de consumir pequenas quantidades de terra para se conectar à natureza —, adiciona uma camada de significado à relação dos personagens com suas raízes e com a própria existência.

Jackson também se destaca ao capturar as nuances da fala e da cultura negra, — mesmo que, por vezes, esse seja um recorte do afro-americano — incorporando repetições estratégicas e diálogos que soam autênticos e carregados de personalidade. Essas escolhas adicionam autenticidade e reforçam o papel da linguagem como um elemento cultural essencial.

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O ritmo lento de Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal é uma escolha artística que reflete a profundidade emocional e a conexão sensorial com o tempo, essencial para a narrativa. É compreensível que algumas pessoas possam considerá-lo enfadonho, esse ritmo é uma extensão da temática do filme, que privilegia a contemplação e o silêncio como formas de expressão. A lentidão também se alinha à poética visual da obra, oferecendo espaço para que o espectador absorva as nuances das paisagens, das texturas e das emoções, transformando o ato de assistir em uma experiência meditativa e introspectiva.

Embora a narrativa opte por deixar lacunas sobre os sentimentos de Mackenzie em alguns momentos-chave, essa escolha parece intencional. Ela convida o espectador a preencher essas lacunas com sua própria interpretação, destacando a universalidade da experiência humana. O filme não entrega respostas fáceis, mas oferece uma jornada emocional que permanece com o público muito depois dos créditos finais.

Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal é uma celebração do amor, da perda e da resiliência. Com uma abordagem cinematográfica ousada e intimista, quase como um ensaio artístico, Raven Jackson entrega uma obra que tem potencial para figurar, no futuro, entre os clássicos do cinema negro contemporâneo. Sua dedicação em honrar gerações passadas, enquanto cria algo profundamente pessoal, transforma o filme em uma experiência que merece nossa atenção.

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