Crítica | Calígula: O Corte Final - um milagre e um épico reinventado
Vertigo Releasing

Crítica | Calígula: O Corte Final – um milagre e um épico reinventado

Em 1979, Calígula surgiu como uma promessa de épico histórico que misturava política, luxúria e poder. Mas, no corte final levado aos cinemas por Bob Guccione, dono da revista Penthouse, o que chegou ao público foi um desfile de pornografia explícita e violência gratuita, apagando qualquer traço de profundidade ou intenção original da obra. Décadas depois, a história ganha uma nova chance com Calígula: O Corte Final, que transforma o desastre em uma obra complexa e digna de atenção.

Com mais de 90 horas de material bruto descoberto em 2019, o produtor Thomas Negovan se lançou na ambiciosa tarefa de recriar a obra megalomaníaca idealizada por Tinto Brass. O resultado? Um épico visualmente deslumbrante que, mesmo carregado de excessos, agora encontra equilíbrio e coerência pela primeira vez.

Na nova versão, Malcolm McDowell (Laranja Mecânica) brilha como Calígula, o jovem imperador romano que ascende ao poder e mergulha em uma espiral de corrupção e devassidão. O roteiro restaura a crítica afiada de Brass sobre os perigos do poder absoluto. Calígula, ao mesmo tempo fascinante e repulsivo, é retratado como um homem tragado por seus próprios desejos, sempre à procura de limites que simplesmente não existem.

Crítica | Calígula: O Corte Final - um milagre e um épico reinventado
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Diferente da versão de Guccione, que transformou o filme em um circo grotesco, O Corte Final utiliza o erotismo e a violência com propósito narrativo. Não é uma experiência fácil: cenas como a humilhação de um casal em sua noite de núpcias e um parto gráfico ainda são desconfortáveis. Mas, ao focar mais nos rostos e emoções dos personagens do que na vulgaridade explícita, o filme provoca horror e reflexão em vez de mero choque.

Além das atuações, o design de produção é um espetáculo à parte. Os cenários luxuosos e figurinos grandiosos ganham nova vida com a restauração das cores e texturas. É como se a Roma de Calígula ressurgisse das cinzas, com toda sua beleza e decadência. A trilha sonora também foi reformulada, adotando um tom épico que se conecta com clássicos como “Spartacus” (1960) e “Cleópatra” (1963).

Para aqueles que já haviam descartado Calígula como uma bagunça sensacionalista, este novo corte é quase um novo filme. Ele resgata o obra das garras da pornografia barata o devolve ao lugar onde deveria estar: como uma crítica poderosa sobre os perigos do poder ilimitado e a destrutividade do consumo desenfreado.

Imagine um mosaico romano, suas peças reluzentes formando imagens de glória, decadência e sangue. Cada pedaço desse mosaico representa uma tentativa de contar a história de Calígula, o imperador cuja vida foi marcada por luxúria e loucura. Esta versão definitiva, resgatada do limbo por mãos dedicadas, é como um restaurador que recupera as cores vibrantes de uma obra de arte que quase se perdeu.

O filme é uma viagem que começa com promessas de ouro e termina em sombras. Desde o primeiro frame, sentimos que estamos diante de algo maior que a vida, uma história onde cada cena é um banquete visual. As paisagens épicas e os cenários extravagantes gritam que Roma não era apenas um império, mas um estado de espírito. E que estado de espírito! Loucura, luxúria, poder e tragédia se entrelaçam como serpentes em uma orgia de significados.

Tinto Brass, com seu olhar artístico, e Gore Vidal, com sua escrita afiada, tentaram criar uma pintura de Roma que fosse tão poética quanto brutal. Mas Guccione, o terceiro pintor dessa tela caótica, preferiu carregar as cores com pornografia, ofuscando a intenção original. Esta nova edição, porém, limpa os excessos e deixa transparecer a verdadeira intenção: mostrar Calígula não apenas como um tirano, mas como um homem tragicamente humano.

Crítica | Calígula: O Corte Final - um milagre e um épico reinventado
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Se Tibério, o imperador anterior, é retratado como um velho lobo que devora todos à sua volta, Calígula é o filhote ferido que cresce para morder mais forte. Ele não apenas herda a crueldade, mas a transforma em um espetáculo. Sua obsessão por humilhar, controlar e ser adorado se torna um show de horrores que não poupa ninguém, nem mesmo ele próprio.

No entanto, mesmo com a restauração, o filme não se acovarda diante do horror. Ele encara a violência sexual e a decadência de Roma com uma frieza que, ao mesmo tempo, fascina e repele. Os cenários são pesadelos vivos, mesclando beleza e repulsa em um equilíbrio perturbador. A Roma de Calígula não é apenas um lugar; é uma alma coletiva, uma consciência doente onde o poder corrompe tudo.

O filme também brinca com simbolismos e metáforas, como um poeta em um anfiteatro. O ato de Calígula se declarar Deus, por exemplo, é menos uma exibição de poder e mais uma confissão de fragilidade. Sob o manto divino, ele é apenas um homem aterrorizado pela certeza de sua mortalidade. Esse aspecto poderia ter sido mais explorado, é verdade, mas o que está ali já é suficiente para causar impacto.

Por outro lado, a edição, embora melhorada, ainda tropeça em alguns momentos. O ritmo às vezes parece quebrado, interrompendo o fluxo da narrativa. São cortes bruscos, excessivos, que evidenciam o trabalho árduo que foi criar essa versão, mas cinematograficamente, deixa a desejar. É aqui que o filme nos lembra que, apesar de sua grandiosidade, ele ainda carrega cicatrizes de sua produção conturbada.

Calígula: O Corte Final é uma obra que mistura a pompa dos épicos históricos com a introspecção dos filmes com uma proposta mais artística, no sentido mais plástico. Sob a nudez e a violência, há uma tentativa sincera de entender o que faz um homem como Calígula. Ele é um monstro, sem dúvida, mas também é um reflexo de sua época, de um mundo onde o poder absoluto transforma deuses em demônios.

Crítica | Calígula: O Corte Final - um milagre e um épico reinventado
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Mesmo com cortes de cenas de sexo explícito, essa nova verão de Calígula está longe de ser uma experiência agradável. O filme segue sendo desconfortável, que nos força a encarar os lados mais sombrios da humanidade. Também uma jornada recompensadora, que nos lembra que até os piores tiranos têm suas tragédias pessoais. Um filme que não pede para ser amado, mas para ser entendido.

Se Calígula era antes um “blockbuster porno”, com uma grande estrela, agora, sob nova luz, alcança as alturas de uma grandiosa obra cinematográfica – mesmo que em meio às sombras de sua brutalidade.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.