Crítica | Mickey 17 é sobre um homem endividado topando um trabalho arrombado
Warner Bros./Divulgação

Crítica | Mickey 17 é sobre um homem endividado topando um trabalho arrombado

Se você já trabalhou em um emprego onde sentiu que poderia ser substituído por uma máquina – ou pior, por outra pessoa mais barata –, provavelmente vai se reconhecer em Mickey 17. O filme de Bong Joon-ho chega como uma sátira divertida e absurda da nossa relação com o trabalho, colocando a questão da exploração humana em um cenário tão exagerado quanto o nosso próprio sistema. Imagine ser substituído, não apenas uma vez, mas infinitamente, até que você quase esqueça quem você é.

Baseada no livro “Mickey 7”, de Edward Ashton, a história se passa em um futuro próximo. Mickey Barnes (Robert Pattinson) tenta abrir um negócio junto com seu amigo Timo (Steven Yeun), mas as coisas não saem como esperado e ele acaba se endividando com um agiota. Diante disso, decide abandonar a Terra e se juntar a uma expedição para colonizar um planeta distante, liderada pelo político Kenneth Marshall (Mark Ruffalo) e sua esposa Ylfa (Toni Collette).

Assim como na vida real, Barnes topa um emprego arrombado pra se livrar de uma dívida com um agiota. Sua função? Garantir a sobrevivência de uma colônia humana no planeta Nilfheim, em um lugar onde as probabilidades de sobrevivência são mínimas. Cada vez que ele morre, seu corpo é substituído por outro clone, e a missão segue. Esse absurdo é um reflexo ampliado de um problema bem real: o de ser visto como número em um sistema que não valoriza a individualidade, apenas a produção.

O humor sombrio de Bong Joon-ho permeia o filme, criando uma atmosfera onde a exploração do trabalho não é tratada com seriedade dramática, mas com uma boa dose de deboche. Ao invés de um filme pesado sobre a desumanização do trabalho, o diretor opta por uma abordagem mais leve, ainda que igualmente crítica.

A cada morte de Mickey, sua consciência é transferida para um novo corpo, e ele segue com a mesma missão, com a mesma frustração, mas com um toque de humor bem desconfortável, quase como se o filme dissesse: “você é substituível, mas e se te trocassem por uma versão mais eficiente de você mesmo?”. O que poderia ser uma reflexão triste sobre a desumanização do trabalho se transforma em uma sequência de cenas cômicas, onde Mickey, com seu humor afiado, questiona seu papel nesse sistema insano.

As atuações também são fundamentais para a construção desse tom de sátira. Robert Pattinson brilha ao interpretar Mickey 17 e sua versão subsequente, Mickey 18. A alternância entre as duas versões do personagem, com suas dúvidas existenciais e a busca por algo além do trabalho impessoal, é marcada por uma leveza que faz o filme funcionar. Ele consegue capturar a angústia de um trabalhador que sabe que, não importa o quanto se esforce, ele será sempre substituído, mas ao mesmo tempo questiona o absurdo disso. É como se o filme fosse uma alegoria de como somos, muitas vezes, descartáveis para os sistemas nos quais vivemos.

Os vilões também não ficam atrás. Interpretados por Mark Ruffalo e Toni Collette, eles são exageradamente caricatos, representando figuras políticas e empresariais que praticamente encarnam versões antropomorfizadas do capitalismo. Ruffalo, com sua atuação cheia de maneirismos, mais parece um personagem de reality show do que um líder corporativo. O tom, claro, é de uma crítica bem-humorada e quase grotesca, como se Bong Joon-ho estivesse perguntando: “Se clones são descartáveis, por que as figuras de poder não seriam igualmente ridículas?”

Em termos visuais, Mickey 17 é mais “realista” do que sua proposta e condução direciona e essa estranheza combina com esse tom satírico, onde dialoga visualmente com outro filme com proposta parecido: Tropas Estelares. A direção e a cinematografia são impressionantes, criando um ambiente que é ao mesmo tempo familiar e alienígena. A escada em espiral que aparece em uma das cenas é um belo exemplo disso, representando a alienação do trabalho – uma linha de produção sem fim, onde os indivíduos são peças substituíveis. A riqueza de detalhes nos cenários, desde a espaçonave até o planeta Nilfheim, cria um universo imersivo que faz você se sentir parte do absurdo, mesmo enquanto a crítica está bem ali, na sua cara.

Ainda assim, como qualquer sátira que se preze, o filme tem seus exageros, e nem todos eles funcionam tão bem. Alguns momentos, especialmente no terceiro ato, se perdem em cenas desnecessárias e piadas que parecem forçadas, com o filme flertando mais com o caos do que com a reflexão que poderia ter sido mais forte. O desenvolvimento de personagens secundários, como Nasha (interpretada por Naomi Ackie), também deixa a desejar, já que elas são relegadas a papéis menores, sem a profundidade que poderia ter feito a crítica ao sistema ainda mais pungente.

Mickey 17 diverte e provoca, sem a carga pesada de outras obras do diretor, mas ainda mantendo a marca registrada de Bong Joon-ho: a crítica à exploração humana e ao absurdo dos sistemas que nos prendem. É uma farsa que parece, em muitos momentos, um reflexo exagerado da nossa própria realidade de trabalho cada vez mais impessoal. O filme, com sua irreverência, lembra que, não importa quantas versões de nós mesmos sejam criadas, todos acabamos, de alguma forma, descartáveis.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.