Kiyoshi Kurosawa | mestre do terror psicológico reinventou seu próprio cinema em 2024
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Kiyoshi Kurosawa | Mestre do terror psicológico reinventou seu próprio cinema em 2024

Cineasta lançou três filmes no ano passado

Em 2024, o cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, reconhecido como um dos grandes nomes do terror psicológico, retornou às telas com três obras que consolidar ainda mais seu legado — e reinventa seu próprio fazer cinema. Com uma carreira que já ultrapassa três décadas, Kurosawa é conhecido por sua habilidade em mesclar o sobrenatural com o cotidiano, criando narrativas que perturbam e instigam. No último ano, ele apresentou ChimeCloud e um remake de O Caminho da Serpente, filme originalmente lançado por ele mesmo em 1998. Cada um desses projetos reflete a evolução do diretor, que continua desafiando as expectativas do público e da crítica.

Em Chime, Kiyoshi Kurosawa mergulha na ideia do espaço urbano como um cenário aterrador, explorando a alienação e a violência irracional de forma crua e experimental, enquanto Cloud apresenta um revendedor de produtos que, ao buscar uma vida isolada, se vê envolvido em uma série de eventos inexplicáveis que ameaçam sua existência. Já no remake de Caminho da Serpente, o diretor revisita a temática da vingança, agora em uma narrativa francesa, onde uma mulher enigmática se alia a um homem em busca de respostas sobre a morte de sua filha, mergulhando ambos em um turbilhão de tortura e segredos sombrios. Juntos, esses filmes reforçam a maestria de Kurosawa em entrelaçar o psicológico, o sobrenatural e as complexidades humanas.

Cloud: o inferno contemporâneo

Kiyoshi Kurosawa | mestre do terror psicológico reinventou seu próprio cinema em 2024
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Kiyoshi Kurosawa sempre teve a habilidade de transformar o cotidiano em algo profundamente perturbador. Em Cloud, ele não apenas mantém essa tradição, mas a eleva a um novo patamar, explorando as angústias de um mundo hiperconectado e desumanizado. O filme, que começa como uma reflexão sobre as crises financeiras e existenciais do Japão — um tema recorrente em sua filmografia —, rapidamente se transforma em um thriller tenso e violento, onde a linha entre vítima e algoz se dissolve em meio ao caos.

O protagonista, interpretado por Masaki Suda, é um revendedor de produtos que vive à margem da legalidade, acumulando capital através de golpes e vendas online. Sua vida, aparentemente controlada, desmorona quando ele se torna alvo de uma onda de ódio e vingança vinda de pessoas comuns, tão desesperadas quanto ele. Kurosawa usa essa premissa para construir uma alegoria poderosa sobre o individualismo e a desumanização da era digital. A câmera, muitas vezes claustrofóbica, e os planos longos amplificam a sensação de isolamento, enquanto os espaços urbanos, frios e impessoais, servem como pano de fundo para a violência que explode de forma quase orgânica.

O que mais impressiona em Cloud é a forma como Kurosawa equilibra o horror psicológico com cenas de ação impactantes. Os tiros, por exemplo, são tratados com uma intensidade sonora rara, quase física, que remete a clássicos do gênero como “Fogo contra Fogo”. No entanto, ao contrário de muitos filmes de ação, aqui a violência não é glamourizada, mas sim exposta em sua crueza, como um reflexo da degradação humana. A cena final, ambientada em uma fábrica abandonada, é um exemplo magistral disso: uma sequência de perseguição que mistura tensão, brutalidade e um toque de absurdo, fechando o filme com uma sensação de desespero que ecoa desde os primeiros minutos.

Cloud pode não ser o filme mais complexo de Kurosawa, mas é certamente um de seus mais impactantes. Ao mergulhar nas misérias do mundo contemporâneo, ele nos lembra que, muitas vezes, o verdadeiro horror não está no sobrenatural, mas naquilo que nós, humanos, somos capazes de fazer uns com os outros.

Chime: o ruído que consome

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Em Chime, Kurosawa constrói suas incursões no horror psicológico um curta-metragem que encapsula toda a maestria de seu cinema em apenas 45 minutos. A história gira em torno de um professor de culinária, um homem comum cuja vida é perturbada por eventos inexplicáveis após um de seus alunos demonstrar comportamentos perturbadores.

O que vinha se caminhando uma história de possessão ou loucura ganha camadas profundas sob a direção de Kurosawa. Ele utiliza elementos simples — uma cozinha, uma luz refletida, o som de um trem — para construir uma sensação de desconforto que cresce lentamente, como um zumbido que se torna insuportável. A técnica de Kurosawa é precisa: planos longos que imitam a respiração ofegante de quem está à beira do colapso, enquadramentos claustrofóbicos que sugerem uma realidade distorcida e sons que ecoam como alertas de um perigo invisível.

O que mais impressiona em Chime é como o diretor transforma o cotidiano em algo profundamente perturbador. A cozinha, um espaço normalmente associado à nutrição e ao conforto, torna-se um cenário de tensão e violência. O aluno, que inicialmente parece apenas desajustado, passa a ser uma espécie de catalisador para o caos, questionando até que ponto a loucura é individual ou coletiva. Kurosawa sugere que o mal pode estar embutido nas estruturas da sociedade, como um ruído de fundo que ninguém consegue silenciar.

O filme também dialoga com obras anteriores do diretor, como “A Cura”, mas sem se tornar uma mera repetição. Aqui, Kurosawa explora a ideia de que o horror não está no sobrenatural, mas na forma como as pessoas reagem a ele. A violência, quando surge, é crua e desconfortável, sem glamour ou justificativas. É um espelho de um mundo onde a alienação e a pressão constante nos levam a questionar não apenas nossa sanidade, mas também nossa humanidade.

Chime é uma experiência que mistura o real e o onírico, criando uma sensação de que algo está errado, mesmo quando tudo parece normal. E é justamente essa habilidade de transformar o comum em algo extraordinário — e assustador — que faz de Kurosawa um gênio. Chime é um convite para olharmos de perto as fissuras da nossa própria existência. E, cá entre nós, é um convite difícil de recusar.

O Caminho da Serpente: um remake que devora o próprio Kurosawa

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Mesmo com muita certeza no seu tipo de cinema, Kiyoshi Kurosawa, definitivamente, não é um cineasta que se repete, mas que se reinventa. E é isso que torna seu remake de “O Caminho da Serpente” (1998), agora ambientado na França, uma experiência tão fascinante quanto perturbadora. Mais de 25 anos depois do original, o diretor japonês revisita sua própria obra não para copiá-la, mas para desconstruí-la, explorando como o tempo e o espaço transformam não apenas as histórias, mas também a forma de contá-las. O resultado é um filme que, ao mesmo tempo em que homenageia o passado, olha para o futuro, questionando a própria natureza da vingança e do cinema.

Neste remake, a história acompanha uma mulher que se junta a um homem em busca de vingança pela morte da filha. Juntos, eles sequestram membros de uma organização e os torturam em busca de respostas. No entanto, o que começa como uma busca por justiça rapidamente se transforma em uma espiral de dúvidas e violência, onde a linha entre certo e errado desaparece. Kurosawa usa essa premissa para explorar não apenas a natureza da vingança, mas também como a verdade pode ser distorcida pela perspectiva e pelo tempo.

Ou seja trama mantém o núcleo do original — um homem obcecado por justiça e retaliação —, ganha novas camadas nesta versão. Kurosawa utiliza a mudança de cenário para refletir sobre a universalidade do ódio e da culpa, mas também para explorar como a tecnologia e a digitalização do mundo moderno alteram nossa percepção da verdade. Aqui, a vingança não é mais apenas um ato de violência, mas um labirinto de imagens, telas e sombras, onde o passado e o presente se confundem. A câmera, muitas vezes fixa e distante, observa os personagens como se fossem peças em um jogo cruel, enquanto a profundidade de campo do digital permite que múltiplas ações ocorram simultaneamente, criando uma sensação de que há sempre algo escapando ao nosso olhar.

O que mais impressiona é como Kurosawa consegue manter a essência do original — a frieza, a ambiguidade, a sensação de que a verdade é sempre inacessível — enquanto introduz elementos que refletem sua evolução como cineasta. Se antes ele trabalhava com um minimalismo quase teatral, aqui ele brinca com a sobreposição de planos e a fragmentação narrativa, criando uma experiência que é tanto visual quanto cerebral. A violência, quando ocorre, é seca e brutal, mas o verdadeiro horror está na constatação de que a vingança é um ciclo sem fim, onde predadores e presas se confundem, e a fome por justiça acaba devorando a todos.

O Caminho da Serpente não é apenas um remake; é um espelho que Kurosawa segura para si e para o espectador. Ao transpor a história para a França e para o século 21, ele nos faz questionar não apenas a natureza da vingança, mas também a do cinema. Como contar uma história antiga em um mundo novo? Como encontrar sentido em um universo onde a verdade é sempre relativa? Kurosawa nos deixa com a sensação de que, talvez, a única maneira de avançar seja parar de correr atrás da própria cauda.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.