Imagine abrir um livro e, em vez de encontrar uma história linear, ser transportado para um canto de sala onde o tempo não segue uma ordem convencional. Em uma mesma página, você pode testemunhar uma festa de casamento em 1980, um dinossauro vagando milhões de anos atrás e um casal discutindo em 2023. Essa é a experiência proposta por Aqui, a revolucionária graphic novel de Richard McGuire, que desde seu lançamento original em 1989 vem desafiando as convenções dos quadrinhos e inspirando gerações de artistas.
Aqui não é apenas uma história em quadrinhos; é uma exploração audaciosa do tempo e do espaço, tanto no conteúdo quanto na forma. A premissa é aparentemente simples: tudo acontece em um único canto de uma sala. No entanto, McGuire transforma essa ideia em uma experiência que transcende a mídia dos quadrinhos, utilizando a própria estrutura das HQs para questionar como contamos histórias. A obra original, publicada na antologia Raw, editada por Art Spiegelman (“Maus”), causou um impacto imediato no mundo das HQs.
Sua abordagem inovadora, que fragmenta o tempo e o espaço em uma série de janelas sobrepostas, abriu caminho para experimentações narrativas que influenciaram artistas como Chris Ware e Frank Quitely. Ware, por exemplo, incorporou a técnica de McGuire em suas próprias obras, explorando a fragmentação temporal de maneira ainda mais complexa. Já Quitely, com sua “diagramação 3D” em “We3”, mostrou como as ideias de Aqui podem ser adaptadas para narrativas mais convencionais, sem perder sua força inovadora.
A versão expandida de Aqui, lançada em 2014, elevou a obra a um novo patamar. Com 300 páginas coloridas, a graphic novel aprofunda a exploração do tempo, apresentando cenas que vão desde a formação da Terra até um futuro distante. O uso das cores é particularmente notável: McGuire varia as tonalidades de acordo com o período retratado, criando uma paleta que vai dos tons terrosos e pinceladas grossas da pré-história às cores vibrantes e digitais do presente. Essa variação não só ajuda a distinguir as diferentes eras, mas também reforça a ideia de que o tempo é fluido e mutável, mesmo em um espaço aparentemente imutável.
O roteiro de Aqui é uma obra-prima de engenhosidade. McGuire não nos oferece uma trama convencional, com personagens principais e um arco narrativo claro. Em vez disso, ele nos presenteia com fragmentos de vidas, momentos aparentemente desconexos que, juntos, formam um mosaico da experiência humana. Uma mãe segurando seu bebê em 1920 pode ser colocada ao lado de uma cena de festa em 1980, criando um diálogo silencioso entre gerações. Benjamin Franklin discutindo política no século 18 surge ao lado de uma faxineira doméstica no século 21, destacando a banalidade e a grandiosidade que coexistem no mesmo espaço. Tudo isso, pode parecer muito confuso – por vezes até é mesmo – mas a ideia de McGuire em traçar paralelos e signos em uma única página, em coisas, aparentemente, distintas, é o torna a experiência de ler Aqui tão singular.

Essa falta de linearidade pode, a princípio, parecer desconcertante. Afinal, estamos acostumados a histórias que nos guiam do começo ao fim, com um clímax e uma resolução. Mas McGuire nos convida a abandonar essa expectativa e a nos tornarmos observadores ativos. Cada página é uma descoberta, uma oportunidade de criar conexões entre os diferentes momentos apresentados. E é justamente nessa interação entre leitor e obra que Aqui ganha sua profundidade. Não há respostas certas ou erradas; cabe a nós interpretar e dar sentido ao que vemos.
A recente adaptação cinematográfica de Aqui promete levar essa experiência a um público ainda maior. Dirigido por Robert Zemeckis, o filme utiliza tecnologia de ponta para recriar a sensação de imersão temporal da graphic novel. Ainda não assisti ao filme, então deixo essa crítica para você saber mais sobre a adaptação.
Mas Aqui não é apenas uma obra importante para os quadrinhos e o cinema; ela é também uma reflexão profunda sobre a condição humana. Ao nos mostrar a mesma sala em diferentes épocas, McGuire nos lembra de que nossas vidas são apenas um breve instante na história do universo. A casa que hoje abriga uma família feliz pode, em um futuro distante, estar em ruínas ou mesmo ter desaparecido. As preocupações que nos parecem tão urgentes hoje – uma discussão política, uma festa de casamento, uma faxina – são, em última análise, passageiras. E ainda assim, há uma beleza nessa efemeridade. Cada momento, por mais trivial que pareça, é único e insubstituível.
A obra também nos faz questionar o que realmente define um lugar. Seria a sua localização geográfica? As pessoas que o habitam? As memórias que ele carrega? Ao longo das páginas, vemos o mesmo espaço físico ser transformado por diferentes ocupantes, cada um deixando sua marca. Uma parede que em 1957 era pintada de verde pode, em 2020, estar coberta por papel de parede florido. O sofá que hoje é o centro das reuniões familiares pode, em um futuro distante, ser apenas um pedaço de madeira apodrecida. E, no entanto, há algo que permanece, uma essência que transcende as mudanças superficiais.

Essa dualidade entre permanência e mudança é um dos temas centrais de Aqui. McGuire nos mostra que, embora o mundo esteja em constante transformação, há certas coisas que resistem ao tempo. O amor de uma mãe por seu filho, a alegria de uma festa, a tristeza de um velório – essas são experiências universais que se repetem ao longo dos séculos, independentemente do contexto histórico. E é justamente essa universalidade que torna Aqui tão comovente. Ao nos mostrar a humanidade em suas múltiplas facetas, a obra nos convida a reconhecer nossa própria pequenez e, ao mesmo tempo, nossa conexão com algo maior.
Aqui é uma experiência que nos convida a refletir sobre nossa relação com o tempo, o espaço e a vida. Ler essa obra é como olhar para o céu estrelado e se maravilhar com a vastidão do universo. É um lembrete de que, embora nossas vidas sejam breves, elas fazem parte de um todo maior, uma tapeçaria de momentos que se entrelaçam através do tempo e do espaço. E, assim como o canto da sala que serve de palco para a narrativa, nós também somos parte dessa grande história, feita de pequenos instantes que, juntos, formam algo verdadeiramente extraordinário.
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