Há filmes que cutucam feridas. Outros, como Carcaça, enfiam os dedos nelas e torcem. André Borelli não faz concessões: seu thriller psicológico é um experimento claustrofóbico sobre como relações apodrecem quando trancadas a chave. Com apenas dois atores — Paulo Miklos e Carol Bresolin — e uma casa que parece encolher a cada cena, o filme transforma a pandemia em palco para um casamento em estado de decomposição. E o mais assustador? Não sabemos se o monstro é o vírus lá fora, ou os dois seres humanos que dividem a mesma cama.
O preto e branco aqui não é estilo, é sintoma. A ausência de cores escancara o que há de mais cru na dinâmica do casal: Davi, um cinquentão com hábitos suspeitos, e Lívia, uma mulher jovem presa num jogo de suspeitas e autoengano. A câmera, muitas vezes posicionada como um intruso — espiando por frestas, escondida atrás de móveis — nos coloca no lugar de um voyeur incômodo. Quando Lívia descobre que o marido se excita com algo no notebook — o filme nunca nos mostra o quê —, a cena é filmada como um crime em câmera lenta. Ela olha. Ele se aproxima. O silêncio é mais barulhento que qualquer grito.

Borelli acerta quando deixa os corpos contarem a história. Miklos, com sua presença que oscila entre o paternal e o ameaçador, usa pausas e olhares para construir um personagem que pode ser tanto vítima quanto algoz. Bresolin, por sua vez, entrega uma Lívia que é um vulcão de nervos à flor da pele — sua transformação de esposa dócil em mulher esfaqueada pela desconfiança é o motor do filme. Numa cena memorável, ela vira um prato de espaguete na cabeça dele. Deveria ser o clímax da tensão, mas a trilha sonora escolhida quase estraga o momento, como se alguém tivesse colocado uma música de circo sobre um assassinato.
Os sonhos e alucinações de Lívia, no início, são eficazes. Ver um urubu pousado no telhado ou a sombra do marido se alongando na parede como um monstro expressionista cria um clima de pesadelo. O problema é que, depois da décima visão, o espectador já entra em modo “ah, é só mais uma deliração”. O filme perde o fio da meada quando confunde atmosfera com repetição. O verdadeiro terror não deveria estar no que é inventado, mas no que é real — e Carcaça joga essa fronteira fora no momento em que abusa dos efeitos.
Mas há algo especial nas entrelinhas. A cena da piscina, com Lívia deitada numa boia em forma de asas, é uma metáfora perfeita: ela tem asas, mas não voa. Está num casulo que afunda. O pássaro morto na cozinha, os vidros embaçados, o rádio que só toca notícias catastróficas — tudo isso constrói um mundo onde a pandemia é só o pano de fundo para uma doença muito mais antiga: a incapacidade de olhar de frente para o que nos destrói.

A grande sacada do filme está na reviravolta final, que cria uma ambiguidade que salva Carcaça de ser só mais um drama de isolamento. Ele questiona: o que é pior? Estar trancado com alguém, ou descobrir que você é seu próprio cárcere?
O que fica não são os urubus, nem as sombras, mas a pergunta que o filme martela sem dizer uma palavra: quantas de nós já vivemos numa carcaça sem perceber? Borelli não dá respostas. Apenas segura o espelho quebrado — e nos obriga a olhar.
Carcaça está disponível nas plataformas de aluguel Apple TV, Youtube, Amazon e Google Play.
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