Steven Soderbergh nunca foi um cineasta fácil de categorizar. Se no recem-lançado “Presença” ele apostou em uma narrativa claustrofóbica quase experimental, em Código Preto o diretor retoma o território do thriller de espionagem com uma elegância que evoca John le Carré, mas com a fluidez de quem sabe que o verdadeiro mistério não está nas pistas, e sim nos silêncios entre um diálogo e outro. Aqui, a pergunta não é quem traiu o serviço secreto britânico, mas como um casal de espiões de elite lida com a possibilidade de que o amor possa ser, ele mesmo, uma operação de disfarce.
O filme abre com um plano-sequência que já anuncia sua contradição central: a câmera segue George Woodhouse (Michael Fassbender) pelos corredores de um restaurante londrino, luzes neon vazando como halos embaçados, até um encontro clandestino. A escolha não é casual. Soderbergh, conhecido por sua economia narrativa, aqui se permite um preâmbulo quase ornamental — um desvio sutil que sinaliza: algo está fora da ordem. Quando George descobre que há um “intruso” em sua casa, e que sua esposa, Kathryn (Cate Blanchett), está na lista de suspeitos, o jogo não é mais sobre lealdade institucional, mas sobre os limites da confiança íntima.
O casamento como missão secreta
Diferente de “Mr. & Mrs. Smith”, onde o casal descobre-se inimigos, Código Preto parte de uma premissa mais sutil: George e Kathryn já sabem que mentir faz parte do trabalho. A questão é se a mentira profissional contamina o afeto. Blanchett e Fassbender têm química suficiente para tornar crível a ideia de que dois agentes treinados para desconfiar podem, paradoxalmente, confiar um no outro mais do que em si mesmos. A cena em que discutem o caso sobre uma taça de vinho, sem jamais mencionar diretamente a suspeita, é um exercício de atuação minimalista: os olhares dizem mais que as palavras.
Soderbergh e o roteirista David Koepp — em seu melhor trabalho em anos — entendem que o cerne do thriller não está nas reviravoltas, mas na tensão entre o que é dito e o que é omitido. Quando George é instruído a investigar a própria esposa, a câmera os enquadra em planos fechados, quase claustrofóbicos, mesmo em ambientes amplos — como se o apartamento modernista que dividem fosse, ele mesmo, uma sala de interrogatório.
A fotografia, assinada pelo próprio Soderbergh — sob seu pseudônomo habitual, Peter Andrews —, abusa de halation — um efeito de luz difusa que envolve fontes luminosas em névoa, criando uma atmosfera onde nada está totalmente claro. É uma metáfora visual perfeita para o tema: a verdade existe, mas nunca está totalmente em foco.

Se em Presença se perdia em seu próprio experimentalismo, Código Preto é um exemplo de como Soderbergh domina a narrativa clássica sem abrir mão de ousadias. A montagem é rápida, mas nunca caótica; os diálogos são afiados, mas nunca soam como exercícios de estilo. Há uma cena particularmente brilhante em que George e Kathryn interrogam um colega (Tom Burke) durante um jantar. O plano se mantém estático, enquanto os personagens circulam a mesa como peças de xadrez. A tensão não vem de tiros ou perseguições, mas do modo como um garfo vira arma e um sorriso vira ameaça.

Aqui, o diretor também faz uma escolha arriscada: resolver o mistério antes do terceiro ato. Em vez de alongar a dúvida, George e Kathryn descobrem o traidor com relativa facilidade — e o filme então se transforma em um estudo sobre como eles usarão essa informação. É um movimento ousado, que poderia esvaziar a tensão, mas que, no contexto do filme, reforça a tese central: o verdadeiro desafio não é desvendar a mentira, mas decidir como conviver com ela.
Química e contenção
Fassbender e Blanchett são um casal de estrelas no sentido literal e metafórico — ambos irradiam uma elegância que faz crer na aura de “melhores espiões de Londres”. Mas o filme não cai na armadilha de romantizar a profissão. Kathryn não é uma femme fatale, e George não é um James Bond: são profissionais cansados, cujo maior ato de rebeldia é manter um casamento funcional em um meio que premia a desconfiança. Essa parte até lembra, de alguma forma, a abordagem não romântica de David Fincher em “O Assassino”, estrelado pelo próprio Fassbender.
O elenco de apoio também brilha, ainda que com desigualdade. Marisa Abela, como uma hacker instável, rouba cenas com um misto de vulnerabilidade e ferocidade, enquanto Regé-Jean Page — apesar de um personagem pouco desenvolvido — cumpre o papel do burocrata ambicioso. Já Naomie Harris traz peso dramático a uma figura secundária que poderia ser apenas um recurso narrativo.
Luz, câmera e desconfiança
A escolha de Soderbergh por uma estética digital limpa, mas não estéril, é um acerto. Código Preto não tem o grão sujo dos thrillers dos anos 70, nem o brilho artificial de um capítulo de “Missão Impossível”. Em vez disso, opta por uma paleta de azuis profundos e dourados quentes, com destaque para cenas noturnas onde a iluminação artificial — lâmpadas, telas de computador — cria sombras que dividem rostos ao meio. É como se os personagens estivessem sempre parcialmente escondidos, mesmo quando expostos.

O uso de lentes anamórficas — que distorcem levemente as bordas da imagem — em certos momentos reforça a sensação de que algo está “fora do quadro” — uma técnica que Soderbergh já explorara em “Terapia de Risco“, mas que aqui ganha novo significado. Quando George olha para Kathryn, e a moldura da porta corta parte de seu rosto, não sabemos se ele está vendo a mulher que ama ou uma suspeita.
Código Preto poderia ser apenas mais um thriller bem-executado, mas sua inteligência está em reconhecer que o maior perigo não é a traição, e sim a possibilidade de que o amor seja apenas mais uma capa. O filme começa com um plano-sequência que nos leva a um segredo e termina com um jantar — o mesmo onde tudo parecia começar. Desta vez, porém, George e Kathryn já não estão à mesa como colegas de serviço, mas como cúmplices de uma verdade que ninguém mais à volta desvenda. E é aí que Soderbergh crava sua tese: em um mundo de mentiras, a única fidelidade possível é a de quem escolhe compartilhar o mesmo silêncio.
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