Algumas produções não precisam de grandes reviravoltas ou cenas de impacto para serem inesquecíveis. Se a Vida te Der Tangerinas (“When Life Gives You Tangerines“, 2025), k-drama original da Netflix dirigido por Kim Won-seok, entende isso profundamente. O que esse drama propõe — e cumpre com maestria — é transformar o ordinário em extraordinário. Um recorte da vida simples, de pessoas comuns, mas filmado com tanta sensibilidade, cuidado e respeito, que tudo ganha um peso poético raro de se ver no audiovisual.
Ambientado na Ilha de Jeju dos anos 1960, o drama se destaca imediatamente pela atmosfera que constrói. Kim Won-seok, conhecido por obras como “Misaeng” (2014) e “My Mister” (2018), mais uma vez aposta em um ritmo narrativo paciente, contemplativo e profundamente humano. Seu olhar de diretor privilegia o silêncio, o gesto contido, a rotina. Não há pressa em sua direção — há observação. E esse olhar atento faz toda a diferença.

A fotografia de Kim Pil-ho merece aplausos. Fugindo da estética turística que costuma rondar Jeju, o visual aqui é cru e ao mesmo tempo deslumbrante. A luz natural predomina, as cores da terra e do mar não são saturadas artificialmente — ao contrário, mantêm uma paleta orgânica, quente e nostálgica, que conversa com a dureza e a beleza daquele tempo e espaço. Cada quadro parece pensado como uma pintura em movimento, respeitando o espaço, a natureza e a história de quem vive ali.
E é justamente esse respeito que move o roteiro assinado por Im Sang-chun (“Fight For My Way” [2017], “When the Camellia Blooms” [2019]). A trama é simples: Ae-sun (IU) é uma jovem que sonha em ser escritora, ainda que o mundo ao seu redor tente constantemente limitar esse desejo. Já Gwan-sik (Park Bo-gum) é um trabalhador do campo, um homem quieto, prático, moldado pelas dificuldades da vida, mas que ama profundamente — ainda que sem saber exatamente como expressar esse sentimento. Mas não se engane: por trás dessa simplicidade, o texto revela uma profundidade emocional poderosa, abordando temas como sonhos, família, solidão, pertencimento e amor com uma delicadeza tocante.

A performance de IU é absolutamente magistral. Ela entrega uma Ae-sun imperfeita, barulhenta, teimosa, sonhadora e, por isso mesmo, incrivelmente real. É uma atuação baseada em nuances — num olhar enviesado, num sorriso tímido, num suspiro pesado. Já Park Bo-gum, em sua atuação mais madura até aqui, constrói um Gwan-sik de silêncios longos e amor contido. Sua entrega é toda feita no detalhe: na postura, na rigidez que aos poucos se desfaz, na emoção que escapa sem alarde. Juntos, os dois formam um dos casais mais bonitos e autênticos do k-drama recente — não pela paixão explosiva, mas pela cumplicidade construída no cotidiano.
Outro ponto que faz de Se a Vida te Der Tangerinas uma obra grandiosa é a maneira como aborda o feminino. As haenyeo, as lendárias mergulhadoras de Jeju, não são apenas um pano de fundo bonito. Elas são a representação mais poderosa da resistência feminina. Mulheres que desafiam o mar todos os dias para sustentar suas famílias, que trabalham em comunidade, que criam suas filhas na força e na dureza da vida. A presença delas dá ao drama uma camada quase documental, mas cheia de afeto e respeito.

Nesse sentido, a relação de Ae-sun com a mãe é uma das mais impactantes do roteiro. Não se trata de um amor idealizado. Trata-se de um amor real, muitas vezes atravessado por cobranças, silêncios, incompreensões — mas que se manifesta, muitas vezes, em gestos práticos, como um prato de comida deixado na mesa ou um casaco colocado no varal.
A direção de arte merece destaque especial pela construção de um universo visual coeso e verossímil. As casas simples, os utensílios, as roupas, o próprio modo de vida da vila refletem um cuidado extremo com a ambientação. Nada parece artificial ou montado. Tudo pulsa vida real.

A trilha sonora segue essa mesma lógica. Minimalista, discreta e melancólica, ela surge para potencializar a emoção das cenas, nunca para sobrepor o que já está sendo dito — ou não dito — pelos personagens. Mais do que isso, o design de som da série é primoroso: o barulho do mar, o som dos passos na terra, o vento batendo nas janelas — todos esses elementos sonoros ajudam a criar uma imersão sensorial rara.
Mas talvez o grande trunfo do drama seja mesmo sua abordagem dos sonhos. Ae-sun quer ser escritora. Gwan-sik quer apenas amar em silêncio. Nenhum deles tem um caminho fácil. Não há aqui a romantização do “siga seus sonhos e tudo dará certo”. O roteiro sabe que, muitas vezes, sonhar é um ato de resistência. Persistir em ser quem se é pode ser o maior dos enfrentamentos.

Se a Vida te Der Tangerinas é, acima de tudo, um drama sobre permanência. Sobre o que fica quando o tempo passa. Sobre o que resiste — no corpo, na memória, na terra. É um drama sobre pequenas felicidades: colher tangerinas, mergulhar no mar gelado, preparar uma refeição simples, caminhar lado a lado sem precisar dizer nada.
No final das contas, o que Kim Won-seok nos entrega é uma verdadeira aula de audiovisual sensível. Uma obra que entende o poder do silêncio, que constrói sua estética a partir da honestidade do mundo que retrata, que respeita profundamente seus personagens e o público.
Mais do que um k-drama romântico, Se a Vida te Der Tangerinas é uma carta de amor à vida simples, às mulheres que sustentam o mundo, aos sonhos que cabem dentro da palma da mão e aos amores que nascem devagar — e duram pra sempre.
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