Sangue jorrando com câmera lenta. Um close no rosto ferido da protagonista. Um tiro que atravessa o corpo como se fosse dança. Uma mulher sendo perseguida por minutos, ofegante, quase nua. O cinema aprendeu a vender a dor com sensualidade. A agressão com beleza plástica. E a morte com apelo visual.
Em alguns casos, isso tem intenção artística clara. Em outros, é só exploração pura e simples. Mas, no fim das contas, o que estamos consumindo? Estética ou fetiche? Denúncia ou entretenimento? Crítica social ou apelo barato?
A erotização da violência é um dos temas mais incômodos da cultura pop e, por isso mesmo, um dos mais importantes. Porque ela diz muito sobre quem está contando a história, de que forma, e para quem. E porque, mesmo que você não perceba, esse tipo de narrativa molda como a gente vê (e sente) o mundo.
Quando a violência é “bonita demais” pra incomodar
Filmes de ação, suspense e terror há décadas flertam com esse tipo de recurso: transformar o que é brutal em algo visualmente prazeroso de assistir. Quentin Tarantino é um dos mestres nisso. Em Kill Bill (2003–2004), por exemplo, a coreografia das lutas é tão estilizada que a decapitação parece dança. O sangue espirrando em jato vira quase um balé. A vingança é estética. O sofrimento é plástico. E a dor, por mais intensa que seja, vem sempre embalada num visual cool.

Isso não é necessariamente um problema se a proposta for consciente, mas começa a ser quando essa estética é usada para tornar o violento desejável. Quando o filme faz você querer ser o assassino estiloso. Ou quando a câmera acompanha a vítima com mais tesão do que empatia.
Um exemplo mais recente: John Wick (2014–2023). A série estrelada por Keanu Reeves virou referência em coreografias de luta que beiram o artístico. É impressionante de ver. Mas ao mesmo tempo, há uma glorificação da matança tão intensa que o espectador quase se esquece de que aquilo é uma sequência de mortes brutais.
A pergunta aqui não é se o filme é bom ou ruim. Mas: o que ele faz com a violência? E por que a gente gosta tanto disso?
O corpo feminino como palco da dor sensualizada
Agora entra a parte mais desconfortável. E mais urgente.
Quando se fala em erotização da violência, o maior alvo quase sempre é o corpo da mulher. Filmes de terror, principalmente os slashers dos anos 1970, 1980 e 1990, criaram uma fórmula que até hoje persiste: mulher bonita, jovem, sexualizada — e em perigo. De preferência, seminua. A câmera a segue como se desejasse. A violência é precedida por desejo. E a morte vira um clímax visual.
O termo “male gaze” (olhar masculino) nasceu exatamente pra explicar isso. A forma como a câmera olha a mulher não é neutra. Ela reflete o desejo de quem filma — e, por extensão, de quem consome.
Um exemplo clássico é Garota Exemplar (2014), dirigido por David Fincher. Embora o filme tenha muitas camadas, uma das cenas mais comentadas envolve uma morte violenta com forte carga sexual. É complexa? Sim. Mas não deixa de ser uma cena que mistura prazer e morte de forma ambígua — e que gerou debate justamente por isso.
Outro exemplo mais explícito é Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick. A obra é uma crítica dura ao comportamento violento e à alienação da sociedade. Mas o problema é que, pra criticar, ela também expõe, repete e até glamouriza. A cena de estupro ao som de “Singin’ in the Rain” é icônica, sim. Mas até que ponto ela denuncia — ou reproduz o que supostamente quer atacar?

Violência feminina, sim — mas com outra perspectiva
Curiosamente, quando diretoras mulheres abordam a violência, a forma como isso aparece em tela muda completamente. A dor deixa de ser erotizada. O sofrimento não é embelezado. E mesmo quando há cenas de abuso, elas são filmadas com um distanciamento que impede o espectador de se sentir excitado com aquilo.
Em O Piano (1993), de Jane Campion, há cenas de tensão, desejo e dor. Mas tudo é filmado do ponto de vista da mulher. O foco não é agradar quem assiste, mas mostrar a complexidade do que ela sente.

O mesmo acontece em Menina Má.com (2005), dirigido por David Slade, mas com forte influência feminista no roteiro. A protagonista inverte o jogo com seu agressor, e o filme nunca transforma isso em fetiche. Pelo contrário: é desconfortável de ver, propositalmente.
E mais recentemente, em Promising Young Woman (2020), dirigido por Emerald Fennell, a violência de gênero é escancarada — mas sempre sob o controle da protagonista. A narrativa desafia quem assiste, sem jamais entregar uma “cena quente” de abuso. Não há prazer no trauma. Há denúncia.
Esses exemplos mostram que o problema não é mostrar violência. É como se mostra. E por quê.
Quando a violência sexy alimenta o mercado
Infelizmente, a erotização da violência não é só uma questão estética. Ela movimenta dinheiro. E muito.
Filmes com cenas de tortura sexualizada, suspense erótico e abuso disfarçado de “jogo psicológico” vendem. Viralizam. Viram cults. E atraem um público que, muitas vezes, nem percebe que está consumindo misoginia em alta definição.
365 Dias (2020), por exemplo, fez sucesso na Netflix mundialmente. A trama? Um mafioso sequestra uma mulher, a obriga a viver com ele por um ano, e no fim ela se apaixona por ele. É literalmente o fetiche do abuso transformado em romance.

Outra franquia polêmica é Cinquenta Tons de Cinza (2015–2018). Embora se venda como história de amor e BDSM consensual, muitas das cenas envolvem manipulação emocional, controle e relações de poder bem questionáveis. Mas, como o protagonista é bonito, rico e “carente”, tudo é romantizado.
A indústria sabe o que está fazendo. E sabe que o público compra.
Apelo visual ou dessensibilização coletiva?
É impossível não questionar: estamos ficando insensíveis à violência? Ou estamos sendo treinados para aceitá-la desde cedo? Videogames, filmes, séries, clipes. A violência está em todo lugar. E nem sempre como crítica. Muitas vezes como estética. Como estilo. Como marca.
E isso tem consequências.
Quando a violência é vendida como excitante, o espectador começa a associar dor com prazer. Isso afeta como se lida com notícias reais de feminicídio, estupro e agressão. Tudo parece parte de um roteiro. Nada choca tanto.
Não se trata de censurar. Mas de questionar o impacto. Porque o cinema é linguagem. E linguagem molda pensamento.
Existe arte violenta que não é erotizada?
Sim. E é importante reconhecer isso.
Filmes como Cidade de Deus (2002), Menina de Ouro (2004), O Silêncio dos Inocentes (1991), Os Infiltrados (2006), Alemão (2014), O Som ao Redor” (2012) e tantos outros mostram violência de forma crua, impactante, mas sem fetichizar o sofrimento.
A diferença está na intenção. E no lugar de onde se conta a história.
Quando a violência é usada pra chocar, denunciar, provocar pensamento — ela tem função. Mas quando ela é tratada como prazer visual, como se a dor do outro fosse excitante, o problema é mais profundo.
Onde está o limite?
A grande pergunta: até onde a arte pode ir sem se tornar exploração? A resposta talvez esteja menos no “o que se mostra” e mais no “como e por quê”.
É possível fazer arte sobre violência sem transformá-la em fetiche. É possível falar de dor sem torná-la sexy. É possível construir narrativas impactantes que não reforcem a lógica de que o corpo feminino é um palco para o sofrimento masculino. Ou que matar com estilo é algo admirável.
Cabe a quem cria entender esse limite. E a quem consome, cobrar. Criticar. E fazer escolhas conscientes.
O cinema tem o poder de transformar. De provocar. De incomodar. Mas quando ele escolhe transformar sofrimento em produto erótico, ele trai esse poder.
E no fim, a pergunta que fica é simples, mas profunda: por que a gente se acostumou tanto a ver violência como prazer?
Talvez seja hora de desaprender. E recomeçar a ver com outros olhos.
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