relacionamentos abusivos
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Cinema | Por que tantos filmes romantizam relacionamentos abusivos sem perceber?

Quando a paixão nas telonas é feita de controle, ciúme e manipulação, mas o roteiro insiste que é amor.

Você provavelmente já assistiu a uma história de amor no cinema e suspirou. Talvez torceu pelo casal, releu falas bonitas, postou aquela cena no Twitter (X) com emoji de coração. Mas… e se a gente dissesse que, em muitos desses romances, o que parece fofo é, na verdade, abuso disfarçado?

O cinema, por décadas, ensinou que amor é loucura, que ciúme é cuidado, que insistência é romantismo. Mostrou protagonistas que invadem a vida alheia, perseguem, mentem, gritam, manipulam, e ainda assim ganham o “felizes para sempre”. E a gente cresceu achando que isso era amor de verdade.

O problema é que essas narrativas moldam afetos. Criam expectativas. Naturalizam comportamentos tóxicos. E fazem muita gente achar que estar em um relacionamento abusivo é só “viver uma paixão intensa”.

Vamos falar de Crepúsculo (2008)? A saga marcou uma geração e tem, sim, seus méritos. Mas Edward Cullen, o vampiro apaixonado, passa boa parte da história seguindo a Bella sem que ela saiba. Ele invade o quarto dela, a observa dormindo, controla com quem ela fala, diz o que ela deve fazer e age como se fosse tudo pra protegê-la. Tudo isso é pintado como um ato de amor. Mas, se a gente tirar os brilhos de vampiro e o filtro azul do filme, o que sobra é um namorado controlador, possessivo e emocionalmente instável. E a gente achou romântico.

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Agora pensa em Diário de uma Paixão (2004), o queridinho dos apaixonados. Noah e Allie se conhecem ainda adolescentes. Ele insiste com ela, mesmo quando ela diz não. Chega a ameaçar se matar se ela não aceitar sair com ele. Durante o relacionamento, há gritos, brigas, tapas, mas o filme trata tudo como “paixão avassaladora”. O amor é intenso, mas a intensidade vira desculpa pra agressividade. E ninguém chama isso de abuso. A gente chama de “drama de casal”.

Esses padrões se repetem em vários gêneros. Em Cinquenta Tons de Cinza (2015), o milionário Christian Grey impõe contratos, regras, exige submissão emocional, rastreia onde Ana está, interfere na vida dela, e tudo isso é romantizado como “dominância erótica”. O filme se vende como hot, mas na real, disfarça controle como sedução. E milhões de pessoas assistiram achando que estavam vendo o auge da sensualidade. Muita gente começou a desejar um Christian pra si. Sem perceber que, fora das telas, esse tipo de comportamento tem nome: abuso psicológico.

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Outro que entra na lista é A Bela e a Fera (1991). Sim, é uma animação clássica, cheia de magia. Mas pensa comigo: uma garota é sequestrada por uma criatura violenta, é mantida em cativeiro e, com o tempo, se apaixona por ele. Isso tem nome: síndrome de Estocolmo. Mas a Disney preferiu chamar de conto de fadas.

E nem precisamos ir muito longe. Em You (2018–2024), da Netflix, Joe Goldberg é um stalker assassino que mata por “amor”, e o mais louco é que muita gente torce por ele. O cara narra tudo com voz calma, faz declarações lindas, protege a mulher que ama… enquanto esconde o corpo de quem ele matou pra ela. A série até tenta criticar essa obsessão, mas o jeito que filma o Joe (sempre com aquela aura de “bad boy sensível”) não ajuda. E o público se perde no meio da crítica e da sedução.

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Por que isso acontece? Porque o cinema muitas vezes repete estruturas que vêm de uma sociedade patriarcal. Onde homens apaixonados têm permissão pra tudo. Onde controle é confundido com cuidado. Onde a mulher precisa ser “corrigida” emocionalmente pelo homem certo. Onde o amor masculino é visto como algo que exige dominação.

Essa romantização do abuso não é só erro de roteiro. É reflexo direto da forma como o mundo entende os papéis de gênero. Quem ama muito, “sofre”. Quem é homem, “protege”. Quem é mulher, “aceita”. Tudo isso reforçado com cenas lindas, trilha sonora perfeita e falas memoráveis que colam na cabeça, mesmo quando elas são tóxicas.

E tem mais. Muitas dessas histórias colocam o “redentor” no centro da narrativa. O cara problemático que encontra redenção no amor da mulher. E ela, claro, é a salvadora. Ele bate, grita, trai, mente, mas no fim diz “eu te amo” e tudo se resolve. Vide 500 Dias com Ela (2009). Muita gente achou que a Summer foi a vilã da história, mas quem era imaturo e projetava tudo nela era o Tom. O filme até tenta subverter isso, mas boa parte do público entendeu errado. Por quê? Porque ainda temos dificuldade de aceitar que uma mulher pode simplesmente não querer ficar com alguém, mesmo que ele seja o “cara legal”.

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Agora vamos mudar o foco um pouco: e quando o casal é LGBTQIA+? Em muitos casos, esses relacionamentos também caem no padrão tóxico, mas com o plus da “trágica e intensa paixão proibida”. Em Azul é a Cor Mais Quente (2013), Malhação – Viva a Diferença (2017–2018) e até em alguns BLs asiáticos, o sofrimento é a única forma de amar que aparece. Como se a dor fosse obrigatória nesses amores. Como se só valesse a pena se machucar muito antes de ficar junto. Ou nem ficar junto.

E quando se trata de casais asiáticos em romances mainstream, a situação é ainda mais complicada. Ou não existem, ou são extremamente estereotipados. Memórias de uma Gueixa (2005) vende uma “história de amor” entre uma criança vendida e um homem muito mais velho que a observa desde pequena. O filme tenta vender isso como conexão mágica, mas a realidade ali é de poder desequilibrado, idealização do feminino e zero espaço pra que ela faça escolhas reais.

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No Brasil, a gente também romantizou muita coisa que não devia. Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) pode ser clássico, mas retrata um relacionamento onde a mulher apanha do marido e depois sente falta dele. E ele “volta” como fantasma, cheio de tesão. Ela fica dividida entre o cara violento e o chato, mas o filme trata isso como comédia. E virou símbolo do “mulher gosta de macho escroto”.

Tá, mas existe solução? Dá pra fazer romance intenso sem ser abusivo?

Dá. E o cinema precisa aprender com quem já tá fazendo isso há tempos. Filmes como Lady Bird (2017), Com Amor, Simon (2018), Me Chame Pelo Seu Nome (2017), Carol (2015), Ammonite (2020), Your Name (2016) e a série nacional As Five (2020–2023) mostram relações complexas, com erros, sim, mas sem toxicidade disfarçada de paixão. Eles falam sobre desejo, sobre frustração, sobre medo de amar, mas com respeito. Com afeto real. Com cuidado mútuo.

Outro exemplo importante é Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night”, 1934). Um clássico antigo que envelheceu bem. O casal se provoca, briga, tem química, mas tudo é construído com leveza, sem manipulação. Parece simples, mas virou exceção.

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A responsabilidade de mudar essa narrativa não é só do público. É de quem escreve, dirige, filma, distribui. Roteiristas precisam aprender a criar personagens apaixonados sem recorrer ao ciúme possessivo. Diretores precisam parar de filmar brigas como se fossem preliminares. Atores precisam entender que nem todo “homem apaixonado” tem que ser agressivo.

E a gente, como público, precisa questionar. Toda vez que assistir a um filme e pensar “nossa, que romântico”, vale se perguntar: isso seria aceitável na vida real?

Porque se a resposta for “não”, talvez o problema não seja com a realidade. Talvez o problema esteja no que a gente aprendeu a chamar de amor.

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Jornalista e formada em Cinema, apaixonada por cultura asiática e por contar histórias. Provavelmente já assisti tanto aos filmes do Adam Sandler que poderia atuar em qaulquer um sem precisar de roteiro.