Em um mundo onde as relações humanas são cada vez mais mediadas por telas e algoritmos, a trilogia de Dag Johan Haugerud – Sex (2023), Love (2024), Dreams (2025) – não é simplesmente sobre relacionamentos humanos, mas sobre o abismo que se abre entre o que sentimos e o que conseguimos expressar. Cada filme funciona como um espelho distorcido de nossas próprias contradições, revelando como usamos as palavras não para comunicar, mas para construir barreiras contra verdades que nos assustam. Haugerud, com a precisão de um cirurgião, dissecar a linguagem até que ela revele seu núcleo de silêncio e incompreensão.
Em Sex, o primeiro ato desta obra, somos apresentados a dois homens cujas vidas são abaladas por desejos que desafiam não apenas suas relações, mas a própria estrutura de suas identidades. O que torna o filme tão perturbador não é a exploração da sexualidade em si, mas a maneira brutal como expõe a fragilidade de nossos constructos linguísticos. Quando o protagonista insiste que seu encontro com outro homem “não foi traição porque não houve amor”, estamos diante de uma tentativa desesperada de forçar a realidade a caber em definições pré-fabricadas.

Haugerud mostra como criamos categorias – “traição”, “amor”, “desejo” – não para entender o mundo, mas para nos protegermos de sua complexidade insuportável. A cena em que a esposa exige detalhes enquanto o marido se refugia em tautologias vazias é um dos retratos mais precisos já filmados do colapso da comunicação humana.
Love avança ainda mais fundo nesse território pantanoso, transformando um encontro casual em uma investigação filosófica sobre as possibilidades e limitações do afeto. O que Haugerud faz com maestria é desmontar a ideia romântica do amor como solução, mostrando-o antes como um espelho que reflete nossas solidões mais profundas. A personagem de Andrea Bræin Hovig não é uma mulher à espera do amor verdadeiro, mas alguém que descobriu, tarde demais, que passou a vida inteira falando uma língua que ninguém compreende. Sua cena diante do espelho é um momento de pura epifania cinematográfica – o instante em que percebemos que todas as palavras que usamos para nos definir são, no fundo, ficções necessárias para suportar o vazio existencial.

Com Dreams, a trilogia atinge seu ápice lírico e filosófico. Johanne, a adolescente que transforma sua paixão pela professora em uma narrativa literária, personifica nossa necessidade desesperada de dar sentido ao caos das emoções através da linguagem. Mas Haugerud vai além: ele questiona se essas histórias que contamos a nós mesmos — sobre quem somos, sobre o que sentimos — não são, em última análise, apenas outra forma de autoengano. A metáfora do bule de chá, com suas folhas que só revelam sua essência no momento da dissolução, é uma imagem perfeita do paradoxo humano: nossos sentimentos mais verdadeiros só se revelam quando já estão desaparecendo.

O que torna essa trilogia tão revolucionária é sua recusa em oferecer respostas fáceis. Enquanto a maioria dos filmes sobre relacionamentos humanos busca resolver conflitos, Haugerud os amplifica, mostrando como a linguagem, longe de ser uma ponte entre as pessoas, é muitas vezes o que nos mantém separados. Seus personagens falam incessantemente não porque têm algo a dizer, mas porque temem o silêncio que revelaria sua incompletude fundamental. Nesse sentido, a trilogia é uma meditação profundamente contemporânea sobre o isolamento na era da hipercomunicação.
Em um mundo obcecado por definições e categorias, sua trilogia nos lembra que as experiências humanas mais significativas resistem à categorização. O verdadeiro impacto desses filmes não está no que mostram, mas no que deixam por dizer — naquelas verdades que só podemos sentir no silêncio entre as palavras, na pausa entre uma fala e outra, no olhar que contradiz o discurso.
No fim, vendo como uma trilogia, percebemos que Haugerud não está apenas fazendo cinema, esse bibliotecário – sua profissão antes de ir para o audiovisual e ganhar um Urso de Ouro em Berline – está realizando uma espécie de arqueologia da alma humana.

Cada filme escava uma camada diferente de nosso psiquismo coletivo: Sex expõe a fragilidade de nossas identidades; Love revela a solidão no coração de nossos relacionamentos; Dreams mostra as ficções necessárias que criamos para suportar a realidade. Juntos, eles formam um retrato devastador de nossa condição — seres que anseiam por conexão, mas que continuam presos nas celas solitárias de sua própria linguagem.
Talvez a maior realização de Haugerud seja ter criado uma obra que transcende o meio cinematográfico para se tornar um espelho de nossa época. Em um mundo onde nos comunicamos mais do que nunca, mas nos entendemos menos do que nunca, Sex, Love, Dreams nos confronta com uma pergunta essencial: será que alguma vez conseguiremos realmente dizer o que queremos dizer? Ou estamos condenados a girar eternamente em torno do núcleo indizível de nosso ser, usando palavras como muletas em nossa jornada solitária? A trilogia não responde — apenas nos convida a contemplar o abismo. E nesse convite, nessa coragem de encarar o silêncio que habita no coração de toda fala, reside sua verdadeira genialidade.
O que fica não são as palavras ditas, mas o eco daquelas que nunca foram pronunciadas. Como os personagens de Haugerud, todos carregamos dentro de nós verdades que nunca conseguiremos expressar completamente. E talvez seja justamente esse fracasso – essa distância eterna entre o que sentimos e o que conseguimos dizer — que nos torna profundamente, dolorosamente humanos. A trilogia de Haugerud não nos oferece consolo, mas nos dá algo mais valioso: o reconhecimento de que, em nossa incomunicabilidade essencial, estamos todos juntos.
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