Em meio a um cenário saturado de críticas previsíveis à ganância corporativa e à destruição ambiental, A Morte de um Unicórnio me pegou de surpresa. Confesso: entre mais uma sátira social e um novo delírio fantástico com estética de streaming, eu esperava um filme esquecível. Mas a estreia de Alex Scharfman em longas-metragens se revela algo diferente. Uma fábula insólita, provocativa e curiosamente fora de época, como se tivesse escapado de uma prateleira dos anos 90 com um brilho moderno e mordaz. A trama absurda, onde um unicórnio atropelado que vira o centro de uma disputa corporativa por poder e longevidade, poderia ter facilmente descambado para o ridículo. Em vez disso, ela se equilibra com surpreendente segurança entre o grotesco e o encantador, entre o riso nervoso e a crítica. É o tipo de filme que, mesmo com tropeços, me fez lembrar por que ainda vale a pena se deixar surpreender.
Scharfman, também autor do roteiro, parece beber diretamente da fonte de mestres como Michael Crichton e John Carpenter. O DNA de “Jurassic Park” se espalha por toda a estrutura narrativa, seja nos momentos de descoberta científica, seja nas consequências catastróficas de uma exploração que ignora a ética em nome do lucro. Mas, ao invés de dinossauros ressuscitados, o que vemos aqui é um ser mitológico tratado como commodity, seu sangue estudado e explorado como um novo ouro farmacêutico. O filme se abre com tons quase cômicos. Paul Rudd, interpretando o advogado Elliot Kintner, sofre com alergias enquanto discute a vida com sua filha Ridley, vivida por Jenna Ortega. Bastam alguns minutos para que o tom mude: um atropelamento acidental, uma criatura mágica agonizante e, logo depois, a constatação de que o impossível pode ser altamente rentável.
É justamente na maneira como o filme costura essa transição entre o mágico e o grotesco que reside parte de seu mérito. A fotografia, com tons sóbrios e ocasionais explosões psicodélicas, reforça esse contraste entre o real e o imaginário. Há uma intenção clara de tornar o fantástico tangível, e a câmera – nunca apressada, sempre ciente do impacto visual – colabora para criar uma atmosfera onde o surreal parece possível. O uso de sombras para sugerir a presença das criaturas em vez de mostrá-las diretamente remete a clássicos como “Alien”, enquanto os momentos de gore estilizado emprestam do cinema slasher um certo prazer culposo. Quando o sangue iridescente do unicórnio escorre e personagens reagem com ganância em vez de espanto, a crítica social se firma, mesmo que não com toda a profundidade desejada.
O filme tenta apontar o dedo para a elite corporativa, simbolizada pela família Leopold. Richard E. Grant encarna o patriarca Odell com exuberância, flutuando entre a decrepitude física e a fome pelo poder de uma forma quase teatral, mas sem perder o tom. Sua performance dá ao personagem uma aura de vilania trágica, que encontra eco na atuação de Will Poulter, o herdeiro entusiasta por armas e drogas que representa o lado mais caricato e desavergonhado da elite descolada de qualquer ética. Anthony Carrigan, por sua vez, surge como uma espécie de mordomo cínico, sempre à margem, observando o absurdo com aquele olhar de quem já viu de tudo. Suas aparições pontuam a narrativa com humor seco e uma melancolia implícita.

Mas se há uma figura que carrega o coração do filme, ela é Ridley. Jenna Ortega, com sua presença magnética, traduz bem o desconforto e o espanto diante do absurdo. Ela é quem busca compreender a mitologia por trás dos unicórnios, dando ao filme uma âncora emocional que, infelizmente, não é suficientemente explorada. A tentativa de incluir uma camada dramática centrada no luto pela mãe falecida soa mais como convenção do que como necessidade narrativa. O roteiro insinua, mas não aprofunda, e quando tenta amarrar esse drama à ação principal, tropeça em sua própria pressa.
O ritmo, aliás, é bem controlado por mérito da montagem, que sabe alternar entre sequências de tensão e momentos de respiro com eficiência. Mesmo nos trechos mais expositivos, há uma energia pulsante que evita a estagnação. E se o CGI inicial parece tosco, quase inacabado, há uma sensação de que o filme se salva no terceiro ato, quando a ameaça se concretiza de forma mais física. Os unicórnios, até então etéreos, ganham presença tátil, o que contribui para uma virada tonal que abraça o horror com mais convicção. A sensação é de que a equipe guardou seus melhores recursos para o clímax, e isso se reflete não apenas nos efeitos, mas também na coreografia dos ataques e na intensidade da mise-en-scène.
Ainda assim, A Morte de um Unicórnio nunca se leva completamente a sério – e isso é uma bênção. Há um equilíbrio delicado entre a crítica e a comédia, e mesmo quando o filme escorrega em alguns clichês de sátiras recentes como “O Menu” ou “Saltburn”, ele o faz com uma dose de autoconsciência que o redime. Diferente desses títulos que parecem competir para ver quem aponta o dedo mais alto, Scharfman parece mais interessado em rir do absurdo da situação do que em oferecer soluções. Ele constrói uma fábula de horror onde até o sublime pode ser corrompido, mas não deixa de tratar o público com inteligência e um certo carinho pela fantasia.
A direção aposta em uma estilização que, em muitos momentos, supera as falas. Há cenas inteiras em que o visual comunica mais do que o diálogo. A dissecação do unicórnio, feita com a frieza de uma sala cirúrgica, choca não pelo que é explícito, mas pela maneira como quebra a imagem idílica da criatura. A montagem ali é precisa, alternando closes clínicos com reações humanas que revelam mais sobre os personagens do que qualquer fala expositiva. São nesses momentos que o filme realmente brilha, e onde sua crítica social se torna mais potente do que qualquer discurso.
No fim das contas, o filme talvez não mude o mundo nem inove como poderia, mas entrega uma experiência instigante e divertida. Quando resolve abraçar seu lado grotesco e lúdico ao mesmo tempo, encontra uma voz própria, capaz de provocar riso, desconforto e até certo encantamento. E se o unicórnio é, por definição, símbolo do que é puro e inalcançável, o que vemos aqui é exatamente o oposto: a pureza violada por interesses humanos, o inatingível transformado em mercadoria.
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