Na Córsega, as pedras não servem só de alicerce para muros antigos – elas guardam o peso de histórias que se recusam a ceder lugar ao tempo. O Último Moicano, segundo longa-metragem de Frédéric Farrucci, finca os pés nesse solo duro e rachado pelas pressões contemporâneas, mais especificamente pela especulação imobiliária que há décadas ameaça dissolver o tecido cultural e identitário da ilha. Esse não é apenas um thriller sobre um homem perseguido por mafiosos: é um estudo sobre o apagamento. O que está em jogo não é só a terra, mas tudo o que ela representa – tradição, pertencimento, silêncio, memória.
O Último Moicano se constrói a partir de uma narrativa que parte do gesto mais simples – a recusa – e chega ao mais complexo: a transformação de um homem comum em símbolo de resistência. E tudo isso tendo a ilha da Córsega como personagem tão vivo quanto o próprio protagonista.
Logo nos primeiros minutos, o contraste salta aos olhos. O filme abandona o ritmo frenético do cinema urbano e se instala num tempo outro: mais lento, mais denso, mais atento aos silêncios. Farrucci, que já havia demonstrado talento em “Night Ride” de 2019, aqui expande seu olhar, trocando a noite artificial da cidade pelas luzes naturais da costa corsa. O uso frequente de planos gerais e longuíssimos não é gratuito: eles colocam o corpo de Joseph (Alexis Manenti) em confronto direto com a vastidão da paisagem. É uma composição que cria distanciamento e pertencimento ao mesmo tempo.

A trama poderia ser um thriller convencional: um pastor de cabras se recusa a vender suas terras a uma organização mafiosa interessada em instalar um projeto turístico na região. Há confronto, há morte acidental, há fuga. Mas Farrucci não está interessado no espetáculo da violência. Sua câmera evita o sensacionalismo e aposta na contenção. Os tiroteios não são coreografados, são secos, quase burocráticos. E é exatamente essa secura que os torna mais potentes. A tensão se constrói não no excesso, mas na ausência. O que não é mostrado diz mais do que o que está em cena.
Um dos aspectos mais bem-sucedidos do filme está na forma como ele revisita a linguagem do faroeste americano, adaptando-a ao contexto europeu e insular. O Último Moicano é, essencialmente, um western contemporâneo. Joseph é o herói relutante, solitário, que só quer cuidar de suas cabras, mas é puxado para o conflito pela mera teimosia de querer continuar existindo. A figura do “último” já é carregada de simbolismo: o último pastor da costa de Santa Manza, o último resistente ao capital voraz, o último elo entre o presente e uma tradição que insiste em não desaparecer. Ao dar ao seu protagonista o apelido de “O Último Moicano”, Farrucci brinca com o mito e o desloca. O herói aqui não empunha revólveres, mas se refugia nas montanhas com o olhar cansado de quem carrega séculos nas costas.
A direção acerta em estabelecer ritmo e tom. O filme tem uma narrativa linear, mas isso não significa simplicidade. A montagem opta por transições suaves e cortes que seguem a respiração dos personagens. Há uma progressão clara entre os atos, mas tudo é feito com uma cadência que valoriza o tempo do lugar e das pessoas que o habitam. Não há pressa em chegar ao clímax, porque o filme sabe que a força da história está na jornada. Na verdade, o ápice é menos explosivo do que se espera – e isso, longe de ser uma falha, é uma escolha coerente com o estilo proposto.
Na fotografia, há um trabalho cuidadoso com luz natural e tons terrosos, que aproximam o filme da estética do slow cinema (vertente enfatizada por tomadas longas e minimalistas), mas sem abdicar da tensão que move a trama. As cenas noturnas não são limpamente iluminadas: elas têm a granulação da realidade, o escuro que esconde e ameaça. Nas cenas diurnas, o sol da Córsega queima com intensidade, como se também fosse um agente dramático. Cada enquadramento parece planejado para reforçar a ideia de que o lugar molda seus habitantes. A Córsega não é pano de fundo, é campo de batalha.
As atuações são um dos grandes trunfos do filme. Manenti entrega um Joseph introspectivo, que diz muito com poucos gestos. Já Mara Taquin, como Vannina, oferece o contraponto emocional e moderno da narrativa. Ela não é apenas a sobrinha preocupada, é ela quem, ao lançar a campanha online, dá nova forma à resistência do tio. E se a internet, por vezes, é retratada como instrumento de alienação, aqui ela aparece como ferramenta de mitificação. Farrucci não problematiza esse uso, mas há uma intenção clara em mostrar que, mesmo num mundo digital, há espaço para construir lendas.

É verdade que os antagonistas do filme não ganham profundidade. A máfia que persegue Joseph é composta por rostos sem nome, quase simbólicos. Isso poderia ser um problema, se o foco do filme fosse o confronto direto. Mas não é. O perigo que ronda Joseph é maior do que qualquer mafioso armado: é o sistema que transforma terra em mercadoria, identidade em obstáculo. Nesse sentido, os vilões planos funcionam como abstrações. Eles são menos personagens e mais engrenagens de uma máquina implacável.
Mas se há algo que realmente eleva O Último Moicano, é a sua maneira de falar sobre pertencimento. Farrucci, com elegância e firmeza, constrói um filme que olha para a terra como extensão do corpo, e para o corpo como arquivo de histórias. Joseph não quer ser herói, não quer ser lembrado. Ele só quer continuar sendo. Mas quando o simples ato de existir se torna um desafio, a resistência se torna inevitável, e, em algunscasos, lendária.
O velho pastor que abre o filme com um relato sobre o que significa ser corsa serve como eco para o que está por vir. É uma fala simples, quase documental, mas ela planta a semente que germina ao longo da trama. Quando, no meio do filme, ele acolhe Joseph em sua casa, entendemos que sua fala inicial não era só contextualização: era um aviso. Um lembrete de que a terra fala, mesmo quando silenciada.
Os jovens que tentam libertar o veterinário, os grafites nas paredes, os cânticos nos bares… tudo isso constrói uma rede de afetos e memórias que transforma Joseph em algo maior que ele mesmo. Ele desaparece como homem para emergir como mito. Não por escolha, mas porque a comunidade decide assim. Há algo profundamente emocionante nesse processo de mitificação coletiva, ainda que silenciosa, onde cada gesto é um ato de solidariedade.
O mais bonito talvez seja perceber que Joseph jamais pede para ser defendido. Sua lenda nasce do olhar dos outros, da necessidade de preservar o que ainda pode ser salvo. E, no fundo, não é disso que se trata o cinema? De manter viva uma história que o mundo insiste em enterrar?
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