Crítica | Ondas que arrepiam e aquecem: a estreia solo de Pedro Bienemann
Pedro Bienemann/Divulgação

Crítica | Ondas que arrepiam e aquecem: a estreia solo de Pedro Bienemann

Um mergulho intenso entre MPB, rock e poesia sonora

Poucas vezes um primeiro disco soa tão maduro quanto Ondas de Choque e Calor, estreia solo de Pedro Bienemann, lançado em agosto de 2025 pela Matraca Records. O músico, já conhecido por seus trabalhos com Jadsa e no duo 131 (ao lado de Lumanzin), chega com um álbum que parece juntar toda a bagagem de mais de uma década de estrada e, ao mesmo tempo, inaugura uma fase nova, ousada, cheia de frescor.

É um trabalho que não cabe em uma prateleira só. Do samba latino ao reggae, passando pelo blues e pelo rock de contornos tropicais, Pedro cria um mosaico sonoro que dialoga com a tradição da MPB, mas que também flerta com texturas modernas, efeitos de estúdio e experimentações que fazem cada faixa parecer um pequeno universo próprio. Ouvir o álbum do começo ao fim é como atravessar um corredor de portas diferentes, cada uma abrindo para uma atmosfera única, mas todas ligadas por um mesmo fio poético e emocional.

Logo de cara, a faixa “Não te falta nada” deixa claro o espírito do disco. Um pop e groovado com uma letra sobre as porradas que tomamos na vida dos B.O.s que temos que resolver, tudo isso numa métrica que é gostosinha demais para cantar junto.

Mas logo na faixa seguinte, “Dunas”, num som mais etéreo, Bienemann deixa claro que não busca um disco de pop alternativo, mas sim pintar um quadro cheio de texturas – que nem sempre dialogam de forma harmoniosa. Isso se evidencia em como canções como “Luísa”, “Passará”e a própria música que dá título ao disco, vão, cada uma pra caminhos diferentes. Alguns acabam se encontrando no decorrer do disco. Fica evidente que aqui há ecos de Luiz Melodia e Djavan, mas sem nunca tentar soar igual ou nostálgico demais com o aceno para os anos 1970 e 1980. A produção reforça que esse é um disco sim de 2025.

As letras merecem atenção especial. Há um olhar atento para a vida cotidiana, mas sempre filtrado pelas emoções que explodem de forma inesperada. Não é apenas sobre narrar situações; é sobre traduzir sentimentos que muitas vezes ficam escondidos até se tornarem inevitáveis. Em “Um sinal”, que conta com participação de Curumin nos vocais, essa proposta se amplia. O rock indie e tropicalista da canção, cheio de energia e versos quase grafitados em paredes invisíveis, traz à tona um clima de urgência e desordem poética que combina perfeitamente com o espírito urbano e contestador.

E se há um ponto alto que sustenta a expectativa criada antes do lançamento, ele está em Não te falta nada. Lançada como single, a faixa de quase sete minutos já apontava que o álbum seria ousado. Mas no contexto de Ondas de Choque e Calor, ela cresce ainda mais. As camadas instrumentais se acumulam, o arranjo se expande, e a canção ganha ares de manifesto emocional, lembrando que a MPB dos anos 1970 ainda pode ser um terreno fértil para experimentações, e, que Pedro sabe usar esse território sem soar datado.

A alternância de climas é outro trunfo. Em “Motivo nenhum”, o ouvinte transita entre um clima que evoca Radiohead e outro que remete à visceralidade de Cássia Eller. É rock, é MPB, é blues, mas também é bolero – tudo junto, mas de forma orgânica. Nada parece colado ou forçado; ao contrário, é justamente essa instabilidade que cria um charme próprio. E quando o álbum se encerra com “Time-lapse”, a sensação é de atravessar uma espécie de ponte entre passado e presente. A faixa traz vibrações nordestinas, ecos do grupo Boca Livre e ainda insere uma narrativa sobre memória, como se cada pedaço de chão fosse também um pedaço de lembrança. É um final que não fecha, mas abre espaço para reflexões.

A produção do disco é outro ponto que chama a atenção. Há uma sutileza nas camadas eletrônicas, que aparecem sem roubar a cena, apenas reforçando as atmosferas já criadas pelos arranjos. Os instrumentos dialogam entre si sem sobreposição, e isso dá espaço para que a voz de Pedro – firme, mas também vulnerável – conduza as narrativas. Não há excesso, não há desperdício: é um trabalho equilibrado, onde até o silêncio parece calculado.

E aqui entra a dimensão pessoal. Nos últimos meses, tive a chance de assistir a dois shows de Pedro em formato intimista, apenas ele no palco, com sua guitarra e seus pedais. O último foi justamente na véspera da publicação deste texto. A experiência ajudou a entender ainda mais o disco: ao vivo, em sua forma mais crua, cada música ganha uma força diferente, quase confessional. E isso só reforça a percepção de que Ondas de Choque e Calor é, antes de tudo, uma obra de entrega. Não é apenas sobre técnica ou referências; é sobre colocar o coração na frente e deixar a música acontecer.

Até a capa do álbum, com cores vibrantes e energia quase elétrica, funciona como extensão do que se ouve. É visualmente chamativa, mas também simbólica: ondas que tanto arrepiam quanto aquecem, refletindo o equilíbrio entre intensidade e acolhimento que marca o trabalho.

Se Ondas de Choque e Calor é “o melhor disco do ano” ou “um clássico instantâneo”, isso pouco importa. Mais relevante é perceber como um artista que já circulava pela cena independente há anos conseguiu transformar suas influências, experiências e inquietações em algo que soa próprio e atemporal. É um álbum que marca, que provoca, que deixa rastro.

E, para quem já o viu sozinho no palco, é fácil acreditar: essas ondas ainda vão se multiplicar.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.