Ao mesmo tempo que é ousado, também é perigoso se aventurar a refilmar um clássico de Akira Kurosawa. Poucos cineastas no mundo têm repertório e voz autoral suficientemente fortes para encarar tal desafio. Spike Lee é um deles e não apenas se atreve como também imprime em Luta de Classes uma assinatura inconfundível.
O longa, disponível na Apple TV+, nasce dessa encruzilhada entre reverência a uma obra monumental e a urgência de traduzir dilemas morais e sociais para um contexto profundamente enraizado na experiência negra americana. O resultado é um filme vibrante, ora cheio de energia, ora preso em contradições que revelam a própria complexidade de quem o dirige.
A premissa, adaptada do livro “King’s Ransom”, de Ed McBain, e revisitada em “Céu e Inferno“, de 1963 por Kurosawa, agora, tem Denzel Washington no papel principal. O astro surge na pele de David King, um magnata da indústria musical que se vê diante de uma situação-limite: uma gangue tenta sequestrar seu filho, mas, por engano, acaba levando a criança de seu motorista, vivido por Jeffrey Wright.
O dilema ético surge imediatamente – estaria King disposto a pagar o mesmo resgate vultoso para salvar o filho de outro homem? Esse conflito moral, que em Kurosawa representava a tensão entre classe, privilégio e humanidade, ganha em Lee uma camada a mais: a racial, em meio a um país que ainda convive com desigualdades estruturais.
Washington, como sempre, entrega uma atuação firme, modulando carisma e arrogância de maneira calculada. Seu David é ao mesmo tempo o símbolo de um triunfo individual – um homem negro que chegou ao topo de uma indústria feroz – e a imagem de um rei distante, cercado por luxo e preso a dilemas corporativos.
A escolha de colocá-lo em arranha-céus, enquadrado quase como se estivesse sobre a cidade, reforça essa ideia de isolamento. A câmera de Matthew Libatique, colaborador habitual do cineasta, traduz isso visualmente. Enquanto os momentos íntimos e frágeis são filmados com texturas mais cruas, em 16mm ou digital granulado, os ambientes de poder aparecem polidos, iluminados artificialmente, como vitrines que escondem mais do que revelam.

Spike Lee, veterano em transformar a cidade de Nova York em protagonista, mais uma vez faz da metrópole não apenas cenário, mas campo de batalha moral e cultural. O uso da trilha sonora é exemplar, a princípio intrusiva, quase caricata em seu melodrama, vai se transformando gradualmente até dar espaço a uma explosão de ritmos negros e porto-riquenhos, que ganham a tela em longas sequências.
Há momentos em que a narrativa parece interromper-se apenas para dançar – e talvez essa seja a forma mais honesta de Spike nos lembrar que sua obra sempre esteve conectada à vitalidade da cultura negra. A batalha de rap entre Washington e A$AP Rocky, embora possa soar deslocada, funciona como metáfora, são duas gerações, dois modos de encarar o sucesso e o discurso público, duelando no ringue da indústria cultural.
Infelizmente, o roteiro de Alan Fox não consegue acompanhar toda essa potência visual e sonora. Ainda que seja perceptível o esforço em estudar o original de Kurosawa, falta-lhe densidade para sustentar as contradições dos personagens. É como se o texto precisasse da mesma melanina que alimenta a lente de Spike e o corpo de Denzel.
Há passagens que soam forçadas, diálogos que escorregam para a moralização simplista e soluções narrativas que se anunciam cedo demais. Quando a esposa de David lembra os motivos de seus atrasos ou quando o filho do motorista cita a música ouvida na prisão, o espectador já pode prever com clareza a direção do clímax. Essa previsibilidade dilui a força de um enredo que deveria causar desconforto e ambiguidade.
Ainda assim, há méritos que não podem ser ignorados. A montagem alterna formatos e texturas, criando um mosaico que traduz bem o caos contemporâneo. Sequências em trens, shows musicais e até um videoclipe inserido no meio da trama, dão ao filme um dinamismo raro, sobretudo em se tratando de uma refilmagem. Spike, mesmo próximo dos 70 anos, demonstra energia criativa invejável, sem medo de parecer datado ou mesmo “cringe”. Seu famoso double dolly shot reaparece, personagens deslizando em direção ao espectador, quebrando a ilusão realista e lembrando que o cinema também é espetáculo, é invenção.
Há, por outro lado, a sombra de um discurso que fragiliza a obra, o de que o dinheiro não importa. Quando verbalizado por um personagem instalado no topo de um arranha-céu, cercado de luxo, essa mensagem soa artificial, quase ofensiva diante da miséria retratada em paralelo. A contradição não seria um problema se fosse explorada com a ambiguidade necessária, mas o texto opta por entregar respostas fáceis em vez de mergulhar no abismo moral. É nesse ponto que se sente falta da precisão cirúrgica de Kurosawa, capaz de transformar dilemas individuais em tragédias universais.

Apesar dessas fissuras, Luta de Classes não deixa de ser um gesto importante. É, antes de tudo, a reafirmação de Spike Lee como curador da cultura negra, alguém que compreende a necessidade de não apenas contar histórias, mas também dar palco a vozes, músicas, referências e símbolos que constroem identidade. Se o roteiro vacila, é o olhar do diretor que mantém o filme vivo, pulsante, sempre em movimento. A fotografia, a trilha, as atuações – tudo isso funciona como tecido que costura um enredo que, sozinho, talvez não se sustentasse.
No fim das contas, o que se tem é um longa que não alcança a perfeição nem a densidade trágica de seu antecessor, mas que encontra sua relevância na capacidade de dialogar com o presente. Ao contrário de Kurosawa, que conduzia o espectador do céu ao inferno com uma precisão quase matemática, Spike Lee prefere abrir janelas, soltar improvisos, permitir que sua obra respire entre o realismo e a fábula. É um caminho menos rigoroso, mas profundamente coerente com seu cinema.
Leia outras críticas:
Deixe uma resposta