Crítica | Animais Perigosos usa o mar como prisão, o medo como motor e o horror em carne crua
IFC Films/Divulgação

Crítica | Animais Perigosos usa o mar como prisão, o medo como motor e o horror em carne crua

Ver Sean Byrne de volta ao cinema depois de tanto tempo é um alívio. Desde “The Devil’s Candy”, em 2015, ele parecia ter desaparecido, e quem acompanhava sua carreira sabia que havia um talento ali para explorar ainda mais o gênero do horror. Com Animais Perigosos, ele reaparece apostando em algo aparentemente simples: uma mistura de filme de tubarão com serial killer. E o que poderia soar apenas como um exagero bizarro de “sessão da meia-noite” ganha uma forma surpreendentemente envolvente, porque Byrne sabe exatamente o que quer: divertir e assustar ao mesmo tempo, sem enfeitar demais a experiência.

A história começa com brutalidade: um casal de turistas se depara com Tucker, vivido por Jai Courtney, um homem que vive cercado por tubarões e que, logo de início, mostra o quanto pode ser encantador e, ao mesmo tempo, aterrorizante. Esse equilíbrio na interpretação de Courtney é essencial, porque ele constrói um vilão que não precisa de grandes discursos para ser convincente. Ele sorri, conversa, mas carrega sempre uma ameaça latente, que explode quando decide sequestrar e torturar suas vítimas. E o detalhe macabro é que ele não mata sozinho – usa os tubarões como se fossem cúmplices, quase divindades que exigem sacrifícios. A ideia é absurda, mas Byrne a conduz com tanta confiança que fica impossível não embarcar.

Crítica | Animais Perigosos usa o mar como prisão, o medo como motor e o horror em carne crua
IFC Films/Divulgação

É claro que, nesse tipo de filme, o verdadeiro interesse está no embate central. Entra em cena Hassie Harrison como Zephyr, uma surfista solitária que vive na estrada, dentro de sua van, sem laços fixos. O encontro dela com Tucker dá início a um duelo que sustenta quase todo o filme, um jogo de sobrevivência em alto-mar que funciona justamente por ser direto. Harrison entrega uma personagem que foge do clichê da “mocinha pura” do terror; ela é resistente, determinada e, desde o início, dona de suas escolhas, inclusive as que poderiam ser vistas como moralmente questionáveis em filmes mais conservadores. Essa mudança é significativa porque coloca a protagonista em um lugar mais humano e, ao mesmo tempo, mais interessante de acompanhar.

O mar, nesse cenário, não é apenas pano de fundo. Ele é o palco onde tudo acontece e, de certa forma, o grande inimigo que prende os personagens em uma situação sem saída. O filme não aposta em escuridão excessiva ou truques de iluminação para gerar suspense. Pelo contrário, boa parte das cenas é clara, mostrando cada detalhe da embarcação, das cordas, da água ao redor. Isso dá um ar de realismo que aproxima o espectador. Não é o medo do que está escondido, mas do que está claramente diante de nós. E isso é ainda mais perturbador quando a violência acontece, porque não há espaço para se esconder atrás da estética sombria.

A forma como Byrne filma as sequências de ação merece destaque. Em vez de apostar em cortes rápidos que confundem, ele deixa a câmera acompanhar os movimentos de forma clara. Isso faz com que cada soco, cada queda ou cada ferimento tenha peso. Dá para sentir, quase no corpo, os impactos que os personagens sofrem. Essa escolha aumenta a imersão e torna a luta pela sobrevivência muito mais envolvente. O mesmo vale para os efeitos práticos de sangue e feridas, nada parece artificial demais, e é justamente essa fisicalidade que provoca desconforto.

Se a fotografia e a encenação trazem clareza, a trilha sonora de Michael Yezerski ajuda a construir tensão. Ela sobe e desce junto com a ação, intensificando momentos de perigo e aliviando quando há respiro. É uma trilha que não tenta roubar a cena, mas que guia as emoções do público de maneira eficiente. Já os sons do ambiente – o barulho do barco, da água, dos próprios tubarões – reforçam essa sensação de estar preso no mesmo espaço que os personagens.

O filme também brinca com referências do gênero de forma consciente. Há ecos de clássicos como “A Tortura do Medo”, além de piscadelas para slashers mais modernos e, claro, para “Tubarão”, de Spielberg. Mas Byrne não transforma isso em paródia nem em homenagem vazia. Ele assume os clichês e os utiliza como parte da diversão. Tucker é um vilão caricato, sim, mas a atuação de Courtney consegue dar alguma dimensão, e, principalmente, consegue convencer que ele pode ser tão assustador quanta os tubarões do longa; Zephyr é uma sobrevivente bad ass, mas sem perder a vulnerabilidade que a torna próxima de nós. O filme encontra um equilíbrio entre ironia e seriedade, o que o torna mais saboroso.

Crítica | Animais Perigosos usa o mar como prisão, o medo como motor e o horror em carne crua
IFC Films/Divulgação

É verdade que o primeiro ato demora um pouco mais do que deveria para engrenar, e que os múltiplos “falsos finais” no desfecho acabam alongando a experiência além do necessário. Esses são os pontos em que a narrativa perde parte da energia que vinha construindo. Ainda assim, são deslizes pequenos quando se pensa no conjunto. Porque o que fica, no fim, é a lembrança de um terror que não se leva tão a sério, mas que sabe exatamente como entregar tensão e entretenimento.

Animais Perigosos é o típico filme que faz um ótimo “feijão com arroz”dentro do gênero, e talvez essa seja justamente sua força. Em um cenário dominado por filmes de terror que buscam alegorias existenciais, traumas e metáforas sociais a cada minuto, Byrne escolhe o caminho contrário: faz um cinema direto, visceral e acessível, que respeita a inteligência do público sem precisar se travestir de algo “maior”. E isso é refrescante. Há algo de libertador em assistir a um filme que não tem vergonha de ser “apenas” um bom terror, daqueles que nos fazem prender a respiração, pular na cadeira e, no fim, sair satisfeitos.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.