Crítica | O Último Episódio: o gosto doce e passageiro das primeiras descobertas
Filmes de Plástico/Divulgação

Crítica | O Último Episódio: o gosto doce e passageiro das primeiras descobertas

Quem disse que filmes não têm gosto? O Último Episódio, dirigido por Maurílio Martins, tem gosto de goma de mascar de morango e de chocolate Surpresa – o antigo, com figurinhas de bichos que a gente colecionava sem nunca completar o álbum. Tem cheiro de poeira depois da chuva, de caderno novo em fevereiro, e aquele som distante da televisão ligada na sala do vizinho. É um filme que desperta sentidos antes mesmo de despertar lembranças. E é justamente aí que reside sua força; ele não apenas mostra a infância, ele faz a gente senti-la.

Martins, que faz aqui sua estreia solo em longa-metragem, mergulha nas próprias memórias sem precisar confessá-las abertamente. O Último Episódio nasce dessa relação entre o real e o inventado, como quem abre uma caixa antiga e mistura fotografias verdadeiras com recortes de revistas. O filme, ambientado em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, em 1991, acompanha Erik (Matheus Sampaio), um garoto de 13 anos que mente para impressionar a menina por quem é apaixonado, diz ter em casa uma fita com o lendário episódio final do desenho “Caverna do Dragão”. A partir dessa pequena invenção, Maurílio constrói uma jornada que fala sobre muito mais do que um amor adolescente – é sobre a formação de um olhar, sobre como o cinema pode nascer da curiosidade de um menino com uma velha câmera nas mãos.

Assistir a O Último Episódio é como folhear um álbum de recordações que também poderia ser o nosso. Nasci anos depois (1993), no Norte do país, e mesmo assim reconheço tudo: o jeito de brincar na rua até escurecer, o sonho de ter uma fita VHS nova, a sensação de que o próprio bairro era o centro do mundo. Essa universalidade é o que torna o longa tão acessível, ainda que profundamente mineiro em essência. Maurílio não faz um filme sobre “a infância” – ele filma uma infância, específica, cheia de sotaques, gestos e detalhes que, paradoxalmente, a tornam universal.

A direção de Maurílio é de uma delicadeza que se recusa a gritar. Ele prefere escutar. Sua câmera observa as pessoas e os espaços com paciência, como quem tem tempo de sobra para compreender o que está filmando. É uma escolha coerente com a filosofia da Filmes de Plástico, produtora que ele fundou ao lado de Gabriel Martins, André Novais Oliveira e Thiago Macêdo Correia. O coletivo mineiro sempre se destacou por retratar as periferias com humanidade e sem estereótipos – e aqui, mais uma vez, essa verdade pulsa em cada enquadramento.

A fotografia, assinada por Leonardo Feliciano, com um olhar que valoriza a textura do cotidiano, faz Contagem parecer viva. A luz do sol filtrada por cortinas encardidas, os tons quentes das paredes descascadas e o brilho das fitas VHS compõem um retrato realista e, ao mesmo tempo, cheio de poesia. Há uma escolha evidente de trabalhar com a luz natural e uma câmera que se aproxima dos rostos, registrando o instante antes do sorriso, o olhar que hesita. É cinema que procura emoção nas frestas.

Em termos narrativos, O Último Episódio avança com leveza. O roteiro, escrito por Maurílio e Macêdo, tem ritmo de quem caminha devagar por uma rua conhecida, cumprimentando os vizinhos. Tudo isso moldado dentro de um tradicional coming of age – o período em que alguém começa a amadurecer emocionalmente – nada apressado. O conflito central – a mentira de Erik – serve apenas como um gatilho para algo maior: o despertar do olhar artístico, o encantamento com a possibilidade de registrar o mundo. A velha câmera herdada do pai, um músico que o garoto mal conheceu, torna-se símbolo de legado e descoberta. E, de certa forma, também o elo entre Maurílio e sua própria história como realizador.

É impossível não pensar em “Os Fabelmans”, de Steven Spielberg, ao ver o modo como Maurílio transforma memórias pessoais em material cinematográfico. Ambos constroem cinebiografias disfarçadas, onde a ficção serve de espelho para o real. Mas, enquanto Spielberg filma uma América branca e suburbana, Maurílio volta seu olhar para a Contagem operária, de famílias que contam o dinheiro no fim do mês e vivem os afetos com a intensidade de quem sabe que tudo pode faltar, menos o amor. Há também ecos de “Quase Famosos”, de Cameron Crowe – aquele mesmo deslumbramento juvenil diante da arte, a ânsia de registrar o que se sente antes que desapareça.

Crítica | O Último Episódio: o gosto doce e passageiro das primeiras descobertas
Filmes de Plástico/Divulgação

A trilha sonora, discreta e emotiva, reforça o espírito de época sem cair na armadilha da nostalgia gratuita. Junto com a mixagem de som, elas reforçam um sopro de memória: o som de uma fita rebobinando, um riff de guitarra vindo do quarto ao lado, uma música que toca na rádio e marca um instante. O cuidado sonoro é notável – o filme parece escutar os barulhos do bairro, o latido dos cachorros, o chiado dos televisores, o som das crianças correndo na rua. São ruídos que constroem um Brasil reconhecível, um tempo em que a vida ainda parecia analógica.

As atuações são um espetáculo à parte. Matheus Sampaio, que interpreta Erik, traz uma doçura sem ingenuidade. Seu olhar curioso e inseguro carrega o peso das descobertas e o medo de decepcionar. Tatiana Costa e Daniel Victor, como os amigos Cristiane/Cristão e Cassinho, completam o trio com naturalidade e cumplicidade – o tipo de amizade que não precisa de palavras. Gabriel Martins e André Novais Oliveira, também fundadores da Filmes de Plástico, aparecem em papéis menores, mas significativos, como se o próprio coletivo se inscrevesse no filme, reafirmando a ideia de que o cinema nasce do encontro.

Crítica | O Último Episódio: o gosto doce e passageiro das primeiras descobertas
Filmes de Plástico/Divulgação

Tecnicamente, a montagem é um dos pontos altos. Assinada pelo próprio Martins ao lado de Marco Antonio Pereira, hhá uma fluidez que reflete o tempo da infância, aquele tempo elástico, em que um dia parece durar um mês e as pequenas esperas se transformam em aventuras. A edição respeita o ritmo das emoções, permitindo que as cenas respirem. Em vez de cortes frenéticos, há pausas, silêncios e olhares. É um gesto de confiança no espectador, que não é empurrado para sentir, mas convidado a participar.

Mais do que um filme nostálgico, O Último Episódio é um exercício de memória crítica. Ele nos faz pensar sobre como lembramos das coisas, e como o tempo transforma tudo que vivemos em versões editadas de nós mesmos. A infância mostrada ali é doce, sim, mas também é atravessada por ausências, por desigualdades, por aquela sensação de querer o mundo e ter apenas o bairro. O mérito do diretor está em não negar essas contradições. Ele entende que crescer é aprender a olhar para o passado sem idealizá-lo, reconhecendo tanto a ternura quanto as dores.

Ao final da sessão, fica difícil não se emocionar. É profundamente verdadeiro em ver um menino tentando recriar, com uma câmera velha, um episódio perdido de um desenho animado. É o gesto de quem tenta controlar o próprio destino, de quem descobre que inventar histórias é também uma forma de se proteger do mundo. Talvez o cinema tenha nascido assim, de uma mentira contada por amor.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.