Suçuarana carrega consigo algo entre o hipnótico e devastador, características curiosamente inversas a sua proposta, mas que, de certa forma explica a grandeza da obra dirigida por Clarissa Campolina e Sérgio Borges. Desde os primeiros instantes, quando Dora (Sinara Teles), surge caminhando por uma estrada de terra, já se percebe que o filme não busca narrar uma jornada física, mas também espiritual, simbólica e profundamente brasileira. É um cinema de travessia – sobre deslocamentos geográficos, afetivos e ancestrais – que, ao revisitar o espírito livre e errante de “Na Estrada”, de Jack Kerouac, encontra na paisagem mineira o cenário ideal para transformar o movimento em reflexão e a busca em pertencimento.
O enredo, em sua superfície, poderia ser descrito como uma clássica história de estrada: Dora, uma mulher solitária e cansada da vida que leva, decide seguir viagem pelo interior de Minas Gerais em busca de um vale mítico que só conhece por uma fotografia de sua mãe – o enigmático Vale de Suçuarana. Mas essa é apenas a moldura de uma narrativa muito mais densa, na qual o deslocamento não é apenas físico, mas emocional e existencial. O que se desenrola diante dos olhos do espectador é um filme que fala de raízes, da perda delas, e do desejo de encontrá-las novamente em um mundo que insiste em negar abrigo.
A direção de Clarissa e Borges revela um domínio exímio de ritmo e atmosfera. A dupla, conhecida por seu trabalho na fronteira entre a ficção e o documental, constrói um universo em que o real e o mítico coexistem sem conflito. Suas escolhas de encenação têm algo de etéreo, mas nunca se perdem na abstração: cada gesto de Dora, cada silêncio, cada poeira suspensa no ar carrega uma densidade emocional palpável. O filme se permite vagar – e é nesse vagar que reside sua força. Os diretores optam por uma montagem contemplativa, quase meditativa, que faz o espectador partilhar da mesma lentidão e incerteza de sua protagonista.
A fotografia de Ivo Lopes Araújo é um espetáculo à parte. Filmando as paisagens áridas e marcadas pela mineração de Minas Gerais, ele cria composições de uma beleza quase trágica. As montanhas feridas, as ruínas, os espaços vazios – tudo é filmado com uma serenidade que contrasta com a brutalidade que evocam. A luz, muitas vezes dura e quase cega, contribui para a sensação de um mundo em que a sobrevivência é mais concreta do que o sonho, e ainda assim, nas frestas dessa secura, há algo de encantado. É uma fotografia que, em sua dureza, encontra poesia. O trabalho de som, por sua vez, é fundamental para esse equilíbrio entre o real e o místico: ruídos metálicos, motores e ventos se misturam a silêncios cheios de significado, construindo um espaço sensorial que vai além do visível.

Sinara entrega uma atuação de enorme controle e humanidade. Sua Dora é uma mulher endurecida pela vida, mas ainda capaz de demonstrar ternura. É impressionante como a atriz consegue expressar tanto com o olhar, especialmente quando encara o horizonte – como se ali, no vazio à frente, houvesse tanto o medo do que virá quanto a esperança de um recomeço. Dora fala pouco, e é justamente no silêncio que Sinara mais comunica. Sua performance, discreta e vigorosa, sustenta o filme do início ao fim, transformando a jornada da personagem em uma imagem da resistência de tantas mulheres brasileiras invisibilizadas pela história e pelo tempo.
Mas quem realmente rouba o coração do público é Encrenca — o cão vivido por Tony Stark (sim, esse é o nome do animal ator, um achado digno de menção). Em sua presença constante e simbólica, Encrenca deixa de ser apenas companhia: é guia, protetor e, de certo modo, o elo entre Dora e o sobrenatural. Há nele algo de mítico, como se carregasse consigo as forças da natureza que o filme tanto evoca. Sua aparição em momentos-chave transforma o realismo da narrativa em pura fabulação, reforçando o caráter espiritual da jornada. Poucos filmes brasileiros conseguiram usar um animal com tamanha expressividade e sentido narrativo – e Suçuarana o faz com delicadeza e coerência.

Contudo, um dos aspectos mais notáveis da obra é sua habilidade em transitar entre o social e o simbólico. A estrada de Dora é também a estrada de um país inteiro, povoado por pessoas que aprenderam a sobreviver à escassez e à perda. Quando o filme mostra trabalhadores tentando reconstruir uma comunidade nas ruínas da exploração, o gesto é político e poético ao mesmo tempo. Campolina e Borges enxergam beleza nas margens, nos pequenos gestos de solidariedade e resistência que florescem apesar de tudo. Esse olhar compassivo, sem cair no sentimentalismo, faz de Suçuarana um filme de rara sensibilidade e poder de observação.
Há ecos de outros grandes filmes mineiros – “Arábia”, de João Dumans e Affonso Uchôa, por exemplo, ou “O Céu Sobre os Ombros”, também de Borges –, mas Suçuarana vai além. Se Arábia era sobre o homem trabalhador e sua consciência social, aqui a estrada é feminina e ancestral. A busca de Dora é íntima, mas também coletiva: ela carrega consigo a história de um povo inteiro que luta para existir em um país desigual. E quando o roteiro insinua que o Vale de Suçuarana talvez nem exista, o filme se torna ainda mais poderoso, porque transforma a utopia em estado de espírito, e não em destino.
Comparado ao clássico Na Estrada, de Kerouac – que já havia ganhado uma adaptação cinematográfica dirigida por Walter Salles –, Suçuarana é, de longe, a versão mais fiel ao espírito original da obra. Não pela literalidade, mas pela essência; a liberdade, o desajuste, o impulso de seguir adiante mesmo sem saber para onde ir. Clarissa e Borges fazem um road movie à brasileira, substituindo o jazz e o beat das estradas americanas pelo batuque seco da terra mineira e pelos fantasmas de um país que ainda busca se reencontrar com sua própria alma.
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