Parar. Respirar. Fechar os olhos. E deixar o ruído tomar conta. Essa pode parecer uma contradição para quem associa meditação ao silêncio, mas é exatamente essa tensão que move Noise Meditations, novo álbum da banda paulista Bike. Formado por Júlio Cavalcante (voz e guitarra), Diego Xavier (voz e guitarra), Daniel Fumega (bateria) e Gil Mosolino (baixo), o quarteto lança seu trabalho mais ousado e livre em uma década de estrada, que é uma jornada de improvisos, distorções e referências à psicodelia, ao krautrock e ao experimentalismo brasileiro.
Meditations carrega no nome uma provocação: é possível buscar a calma dentro do barulho? A resposta da banda é um sim hipnótico, porém abrasivo. Com dez faixas criadas a partir de sessões improvisadas entre os integrantes, o disco não propõe silêncio, mas uma nova forma de centramento – um transe provocado pelo atrito das cordas, pela reverberação dos ruídos e pela fluidez dos ritmos que invocam desde rituais xamânicos até as pistas do rock alemão dos anos 70.
O disco representa uma espécie de desapego formal em relação aos trabalhos anteriores da banda, como “Quarto Templo” (2019) e “Arte Bruta” (2023). Aqui, a estrutura clássica de composição desaparece quase por completo, dando lugar à espontaneidade e à construção coletiva. As músicas não parecem escritas, mas descobertas. Cada faixa funciona como uma sessão espiritual, uma invocação feita com camadas de som em vez de palavras. E, quando há palavras, elas aparecem como mantras: frases curtas, quase orações pagãs, entoadas em português com uma simplicidade deliberada.
A escolha de manter os vocais de forma minimalista e muitas vezes soterrada por ruídos é parte essencial da proposta. Em algumas faixas, como em “Coral”, as vozes se diluem em camadas de violões circulares e loops que se repetem como respirações mecânicas. Já em “Essência Real”, a banda aproxima referências religiosas e musicais de forma arriscada e vibrante: ecos da umbanda colidem com bases que flertam com um forró-metal-indiano, criando um momento quase ritualístico dentro do caos controlado.
A coesão entre instrumentos parece ter atingido um novo patamar, com cada integrante atuando como extensão sensorial dos demais. Nesse ponto, o trabalho de Mosolino no baixo se destaca. Seu instrumento surge não apenas como a base rítmica e harmônica das faixas, mas como motor principal da perturbação. Ele é o eixo da meditação, mas também o seu abalo. Sem ele, o disco perderia grande parte da sua tensão interna.
Em “Todos os Olhos”, faixa de abertura, o quarteto presta uma homenagem pouco óbvia a Tom Zé, evocando o nome do clássico disco de 1973 e misturando maracatu com metal e ruído industrial. O resultado é uma faixa que inaugura o disco com uma explosão sensorial, sem pedir licença.
A referência ao krautrock aparece de forma ainda mais direta em “NEU!A”, uma das faixas mais intensas do álbum. Com batidas repetitivas e guitarras saturadas, a música assume o legado motorik da banda alemã Neu!, mas sem abrir mão da identidade do Bike. É como se a banda dissesse: estamos dialogando com o passado, mas com os pés cravados na floresta úmida do Brasil.
E a floresta, de fato, parece estar sempre ali, à espreita. Em “Sucuri”, o groove parece vir da terra. Guitarras e beats formam uma massa quente, reptiliana, enquanto a letra invoca a imagem de uma cobra que se aproxima lentamente até ser tarde demais. A atmosfera da faixa se estende para outras composições, como “V.D.C.” e “Bico de Ouro”, onde a batida robótica e o uso intensivo de efeitos criam uma ambientação densa, quase alucinógena.
Apesar de tanta textura sonora e inventividade instrumental, nem todos os elementos funcionam com o mesmo impacto. A aposta em letras curtas e repetitivas, embora coerente com a proposta meditativa do álbum, acaba por empobrecer a experiência lírica. A ideia de que as palavras funcionem como gatilhos mântricos se sustenta em algumas faixas, mas em outras elas soam simplórias e encaixadas de forma apressada. Ainda assim, a força do instrumental e a ousadia nas estruturas compensam esse desequilíbrio, e o disco se mantém firme em sua proposta de ser, acima de tudo, sensorial.
O mais impressionante é como a banda chega a esse ponto de maturidade sem se prender a nenhuma fórmula. Desde o início de sua trajetória, há dez anos, o Bike faz questão de seguir um caminho próprio, cada vez mais longe das convenções do mercado musical. Em tempos em que a maioria dos artistas corre para se encaixar em algoritmos e criar faixas que viralizem em segundos, o quarteto paulista entrega um álbum que desafia, desconcerta e exige atenção. Noise Meditations não foi feito para viralizar, mas para provocar. Para fazer o ouvinte fechar os olhos e mergulhar.
O barulho acalma, sim. Mas só para quem tiver coragem de escutar com o corpo inteiro.
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