Crítica | O Agente Secreto transita entre o afeto pela memória e o peso da ambição
Vitrine Filmes/Divulgação

Crítica | O Agente Secreto transita entre o afeto pela memória e o peso da ambição

Há diretores que constroem filmografias guiadas por um senso de pertencimento. Kleber Mendonça Filho, no Brasil, é atualmente é um principais nomes ao fazer esse tipo de cinema. Desde seus primeiros curtas, o cineasta recifense demonstrava uma relação com o espaço urbano, o modo como a cidade molda o indivíduo e como as histórias pessoais se imbricam nas paredes, nas esquinas e nos sons que a habitam. Essa sensibilidade, que em “Aquarius” e “O Som ao Redor” se manifestava com vigor, retorna em O Agente Secreto, mas desta vez envolta por um projeto ambicioso e irregular, em que o desejo de construir um grande painel histórico se choca com uma execução fragmentada e, por vezes, exaustiva.

A primeira metade do filme surge como uma promessa. Há energia, atmosfera e um controle admirável da ambientação – um domínio que Mendonça sempre demonstrou. O diretor mergulha no Recife dos anos 1970 com minúcia e paixão: cada pôster de ginástica olímpica, cada garrafa de refrigerante antiga, cada loja parece pulsar como um elo perdido com o passado. É nesse cuidado com o detalhe que o filme revela sua alma. A direção de arte reconstrói uma cidade que já não existe, uma Recife demolida e substituída por prédios e espaços anônimos, um retrato que traduz a própria melancolia da perda de identidade cultural. O cinema, aqui, surge como ferramenta de resgate, de preservação de uma memória que o progresso insiste em apagar.

Crítica | O Agente Secreto transita entre o afeto pela memória e o peso da ambição
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Entretanto, à medida que a narrativa avança, esse mesmo olhar afetivo começa a se diluir em meio a um emaranhado de ideias. O Agente Secreto tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo – thriller político, drama, reflexão sobre ditadura e identidade nacional, comentário sobre o próprio fazer cinematográfico – e acaba não sendo plenamente nenhuma delas. A estrutura em três capítulos dá ao filme uma aparência de grande narrativa, mas na prática revela uma colcha de retalhos em que as transições entre tons e gêneros raramente fluem com naturalidade.

O que antes parecia densidade temática se transforma, aos poucos, em dispersão. O segundo ato, por exemplo, que poderia sustentar uma linha mais clara de tensão e desenvolvimento dramático, recorre a uma montagem que se distancia daquilo que construiu anteriormente. As sequências de ação são tratadas com uma frieza que anula parte da energia da narrativa. Há um tiroteio final bem conduzido do ponto de vista técnico, com câmera nervosa e ritmo preciso, mas o impacto emocional é quase nulo. Falta organicidade, falta consequência – a cena parece existir por obrigação de gênero, não por necessidade dramática.

A montagem, de modo geral, alterna entre o rigor e o desleixo. Mendonça domina os momentos de estranheza – planos longos, silêncios carregados, enquadramentos que beiram o onírico – mas se perde quando precisa amarrar o enredo. Há cortes abruptos, elipses mal resolvidas e uma insistência em sublinhar o óbvio por meio de diálogos expositivos. Em diversas passagens, o filme verbaliza aquilo que a imagem já dizia, o que enfraquece a potência simbólica de sua mise-en-scène. Esse didatismo, reforçado por falas que soam artificiais, coloca em risco um dos maiores trunfos do diretor: a capacidade de sugerir mais do que afirmar.

O roteiro sofre também com a multiplicidade de personagens e tramas paralelas. Alguns surgem apenas para ilustrar ideias, outros parecem sobrar em cena, sem função narrativa definida. O personagem vivido por Wagner Moura, por exemplo, é apresentado como oƒ eixo central da história, mas nunca ganha densidade suficiente para sustentar o arco dramático. Moura entrega uma atuação carismática, mas restrita – ele transita entre o charme e a introspecção sem encontrar o ponto de virada emocional que o personagem pede. Falta mistério, falta humanidade. O resultado é um protagonista plano, cuja trajetória não reverbera além da superfície.

Crítica | O Agente Secreto transita entre o afeto pela memória e o peso da ambição
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Em contrapartida, as personagens secundárias – especialmente as femininas – carregam ecos de um Brasil esquecido, ferido, mas resistente. A personagem interpretada por Maria Fernanda Cândido, ainda que prejudicada por planos fora de foco e um tempo de tela reduzido, evoca uma dignidade quase silenciosa, que remete às figuras maternas de Aquarius. Já Fátima (Alice Carvalho), em outra ponta, surge como um grito de respeito e autonomia, símbolo de uma mulher que se recusa a ser reduzida aos estereótipos com que o país é frequentemente visto no exterior. Há um subtexto poderoso sobre o corpo feminino e a forma como ele é politizado e explorado – tema que o filme toca, mas abandona antes mesmo de se aprofundar.

No campo técnico, a fotografia é talvez o elemento mais consistente. Ela capta a luz quente do Recife de modo quase tátil, com um colorido que equilibra o saudosismo e o delírio de um longa de gênero. As cenas noturnas, em particular, exibem um domínio notável do chiaroscuro – esse contraste entre sombra e iluminação que remete ao cinema noir, mas também às narrativas de opressão e vigilância. Em certos momentos, o enquadramento parece aprisionar os personagens dentro do quadro, refletindo visualmente a sensação de clausura que a ditadura impunha. É um uso inteligente da linguagem cinematográfica, mesmo quando o roteiro se perde.

A trilha sonora acompanha essa atmosfera, oscilando entre o jazz setentista e sons diegéticos que emergem da própria cena – um rádio antigo, um ruído de projetor, um tamborim distante. São escolhas que ampliam a textura do filme e reforçam a imersão no período retratado. Mendonça sempre teve um ouvido apurado para o som ambiente, e aqui não é diferente. O barulho das ruas, o eco de vozes, o ranger de portas e o estalar de luzes compõem uma espécie de paisagem sonora que, sozinha, já conta uma história.

Mas, apesar desse requinte técnico, há uma sensação constante de desequilíbrio. O filme quer ser político e poético, realista e alegórico, íntimo e histórico – e no esforço de conciliar essas dimensões, perde o pulso. O terceiro capítulo tenta recuperar o fôlego ao retomar o tema da memória, sobretudo através do olhar do diretor sobre a cidade e sobre o próprio cinema. Dentro dessa perspectiva, é genuinamente belo nessa tentativa de conectar o passado ao presente, de afirmar que os lugares de memória precisam ser revisitados para que o futuro exista. Contudo, a forma como essa reflexão é inserida na trama parece apressada, quase um apêndice ensaístico colado a uma narrativa já saturada.

Não se trata, é claro, de negar a importância do gesto artístico. Mendonça continua sendo um cineasta extremamente sensível, dono de uma visão profundamente humanista. Sua filmografia, mesmo com altos e baixos, demonstra um compromisso com o olhar sobre o Brasil – um olhar que combina denúncia e afeto, crítica e ternura. O Agente Secreto reafirma esse compromisso, mas o faz de maneira desordenada. Há intenções nobres e momentos de brilho genuíno, mas também excessos, descompassos e uma certa rigidez que contrasta com o frescor que o diretor exibia em seus curtas e primeiros longas.

O sentimento final é o de que Kleber Mendonça Filho, ao tentar condensar todas as suas inquietações num só filme, acaba traindo o que sempre fez de melhor: escutar o espaço, observar o cotidiano, revelar a política por meio do gesto íntimo. O Agente Secreto é, portanto, um filme dividido – entre o passado e o presente, entre o desejo e o controle, entre a memória e a tese. Quando olha para os detalhes, o filme encanta. Quando tenta explicar o todo, se perde. Ainda assim, permanece como um registro valioso de uma tentativa de filmar o Brasil não como um conceito, mas como um corpo em disputa, cheio de cicatrizes, ruídos e lembranças que insistem em sobreviver.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.