49ª Mostra | Ontem à Noite Conquistei Tebas; Yanuni; Almas Mortas
Colagem: Conecta Geek

49ª Mostra | Ontem à Noite Conquistei Tebas; Yanuni; Almas Mortas

Chegar ao fim da Mostra é sempre aquele momento em que a cabeça já está um pouco saturada, os olhos levemente avermelhados e a vontade de encontrar conexões entre os filmes começa a parecer uma tarefa tão impossível quanto conseguir outro ingresso para a sessão esgotada do dia. Nesta reta final da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, percebo que Ontem à Noite Conquistei Tebas, Yanuni e Almas Mortas não têm absolutamente nada em comum. De um grupo de jovens portugueses vagando entre ruínas, passo para uma ativista indígena enfrentando o peso do marketing ambiental e termino com um western pós-moderno sobre a compra e venda de mortos. Mas, de certa forma, essa também é a graça dos festivais, decidisse brincar de colagem temática, testando o quanto ainda consigo achar sentido no caos.

Ontem à Noite Conquistei Tebas

49ª Mostra | Ontem à Noite Conquistei Tebas; Yanuni; Almas Mortas
Divulgação

Ontem à Noite Conquistei Tebas não se preocupa em surpreender, apenas em existir com uma honestidade quase desarmante. A trama, se é que podemos chamá-la assim, segue um grupo de jovens portugueses em uma caminhada até um antigo forte romano, entre conversas sobre videogames e lembranças da noite anterior. A simplicidade é quase provocação. Nada acontece de forma grandiosa, e é justamente nesse “nada” que o filme encontra seu charme.

Com um olhar contemplativo do diretor Gabriel Azorín, o longa aposta em planos longos e silenciosos, em que a câmera parece mais interessada no vento que passa entre as ruínas do que nas falas dos rapazes. O ritmo arrastado – e aqui o adjetivo não é gratuito – é ao mesmo tempo sua virtude e seu obstáculo. Aos noventa minutos, o silêncio já pesa, mas a persistência é recompensada por uma espécie de intimidade, quando o filme finalmente revela seu verdadeiro tema: a delicadeza da amizade masculina, o tempo como ponte entre passado e presente, e o poder quase espiritual dos lugares que atravessamos.

Tecnicamente, o filme se apoia em uma fotografia naturalista, de luz suave e enquadramentos que evocam o cinema de Apichatpong Weerasethakul, mas sem pretensão estética excessiva. O som – ou a ausência dele – é outro personagem; o ruído da água, o ranger das pedras, o respiro dos corpos. Tudo parece projetado para desacelerar o espectador, lembrando que ver cinema também pode ser um ato de paciência.

Se há algo de frustrante, é a falta de ousadia em ir além dessa serenidade. Ontem à Noite Conquistei Tebas não traz ideias novas, apenas recicla com sinceridade uma sensibilidade que o cinema lento europeu já explorou à exaustão. Mas há uma verdade quase infantil na forma como retrata esses rapazes – despidos de pressa, de ironia e, muitas vezes, de roupa – conversando sem máscaras, como se o mundo lá fora tivesse deixado de existir.

No fim, é um filme que não pede aplausos, apenas atenção. E, quando se aceita seu ritmo e sua doçura despretensiosa, é impossível não se deixar conquistar por Tebas também.

Yanuni

49ª Mostra | Ontem à Noite Conquistei Tebas; Yanuni; Almas Mortas
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Desde os primeiros minutos, Yanuni se apresenta como um filme importante – e ele de fato é. Mas também é um exemplo claro de como o cinema político pode ser engolido pelo próprio marketing. Produzido por Leonardo DiCaprio e pela ativista Juma Xipaia, o documentário transforma uma história essencialmente indígena e brasileira em um produto global que, curiosamente, reforça a velha narrativa do “salvador branco”. A presença de DiCaprio como selo de prestígio internacional, ainda que discreta na tela, contamina o modo como a obra vem sendo vendida: um gesto de apoio que, ao mesmo tempo, reordena as hierarquias do protagonismo.

Juma é uma figura magnética. Sua trajetória, da infância na floresta ao cargo político em Brasília, é potente o suficiente para sustentar qualquer narrativa. Quando o filme a observa com atenção – especialmente nos momentos íntimos, entre a luta e a maternidade – há uma verdade que atravessa a tela. A força do documentário está justamente nesses fragmentos de humanidade, quando a câmera deixa de ser testemunha e se torna cúmplice. Mas esse frescor é frequentemente sabotado por uma montagem que hesita entre a cinebiografia, o panfleto ambiental e o melodrama familiar, perdendo foco no que realmente importa: a estrutura de poder que continua a devorar a Amazônia.

Visualmente, o longa é arrebatador. As tomadas aéreas da floresta – ora poéticas, ora brutais – revelam a habilidade da direção de fotografia em equilibrar beleza e destruição. O som do vento nas copas das árvores contrasta com o estrondo metálico das máquinas de garimpo, compondo uma paisagem sonora que dispensa discursos. No entanto, o impacto visual nem sempre se traduz em densidade política. O filme evita ir fundo nas questões que levanta: quem lucra com a devastação? Como o Estado se omite? Onde falha o próprio sistema de proteção ambiental? Essas perguntas ecoam e depois somem no ar.

Apesar de tudo, há algo de irresistivelmente sincero em Yanuni. Talvez porque, sob a camada de idealização e as armadilhas do marketing verde, ainda reste a figura de Juma, uma mulher que não precisa de DiCaprio para ser heroína.

Almas Mortas

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Nunca li o livro de Gogol, então meu primeiro contato com Almas Mortas veio direto pela lente de Alex Cox – e talvez isso tenha sido o melhor jeito de entrar nesse delírio poeirento. O filme parte de um ponto improvável; e se a fábula russa sobre a compra de almas de servos mortos virasse um western sobre imigrantes esquecidos na fronteira entre o México e os Estados Unidos? Essa transposição soa absurda no papel, mas Cox, fiel ao seu estilo anárquico, faz dela um comentário cínico e espirituoso sobre o capitalismo, a memória e o jeito como o mundo transforma vidas em mercadoria.

A economia do filme, sobretudo num faroeste, soa estranhamente encantador. Poucos cenários, atores caricatos e uma fotografia abrasiva, feita de sol estourado e sombras sujas. Essa limitação vira força estética, com o deserto sendo mais personagem do que cenário, e o ranger metálico das estruturas parece ecoar o próprio vazio moral da história. O protagonista, vivido pelo próprio Cox, é uma figura tragicômica, meio coveiro, meio burocrata, que vaga entre vilarejos comprando nomes de mortos mexicanos para revendê-los. É um homem sem fé, sem causa, e o diretor o filma com uma ironia que beira o deboche, como se o cinema precisasse rir antes de chorar.

O humor aqui é estranho, quase desconfortável. As piadas parecem tropeçar de propósito, os gestos se repetem até perder sentido, e em certo momento o filme vira um musical improvisado. Essa autossabotagem é, paradoxalmente, o que o torna divertido. Almas Mortas não quer ser um western “sério” nem um pastiche acadêmico de Gogol; quer apenas existir nesse limbo caótico, onde tudo soa falso demais para não conter alguma verdade.

Tecnicamente, é um trabalho de guerrilha, com cortes bruscos, enquadramentos tortos e um som que às vezes parece escapar do controle. Mas é nesse descontrole que mora a graça. A farsa é o método, e quando o filme se perde, a sensação é de que ele se diverte com o próprio fracasso. Há momentos em que a crítica social emerge – a exploração de corpos, o valor da vida, o absurdo das fronteiras –, mas nunca de modo didático. Cox prefere rir da tragédia, por isso sua sátira soe tão sincera.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.