Entre um clássico português restaurado e um retrato nigeriano contemporâneo, Aniki-Bóbó e A Sombra do Meu Pai compartilham um mesmo gesto cinematográfico: o de olhar a infância como um espelho da vida adulta – com ternura, mas sem ilusões. Separados por oito décadas, os dois filmes parecem dialogar naquilo que têm de mais humano, a simplicidade dos afetos e o poder de observação sobre o cotidiano. Manoel de Oliveira e Akinola Davies Jr. filmam mundos muito distintos – Porto dos anos 1940 e a Lagos dos anos 1990 –, mas ambos encontram poesia no concreto, naquilo que há de mais comum e, por isso mesmo, universal.
Aniki-Bóbó
Assistir Aniki-Bóbó pela primeira vez é como abrir uma janela para um tempo em que o cinema ainda aprendia a olhar o mundo com olhos de criança – e Manoel de Oliveira, já em sua estreia no formato de longa-metragem, demonstra uma delicadeza e uma convicção formal que poucos diretores atingem mesmo ao longo de uma carreira inteira. O que mais encanta aqui é o modo como ele filma a infância não como uma metáfora ou uma lembrança idealizada, mas como um estado de descoberta constante, cheio de pequenos dilemas, vaidades e purezas que coexistem com a malícia e o desejo.

O filme se constrói a partir de uma maneira muito sincera: Oliveira parte de uma narrativa simples, quase anedótica, mas sua mise-en-scène tem uma precisão que revela uma inteligência cinematográfica já madura. Cada enquadramento, cada gesto das crianças, cada travessura parece medido com um cuidado que não se impõe – um rigor que se disfarça de espontaneidade. A sequência em que o pequeno Batatinhas chega atrasado à escola é uma aula sobre espaço e ritmo: a câmera observa sem pressa, os olhares se cruzam, um gato atravessa o quadro, e tudo acontece como se fosse a primeira vez que o cinema percebesse o mundo infantil com tamanha honestidade.
Ver essa restauração em altíssima qualidade é um deleite à parte. O preto e branco luminoso revela camadas de textura na cidade do Porto, com suas pedras úmidas, fachadas antigas e a luz filtrada pelo rio Douro. É surpreendente notar como essa restauração não apenas preserva, mas amplifica a força poética das imagens. O contraste é nítido, mas nunca agressivo – há um equilíbrio que faz o filme parecer ainda mais vivo, como se o tempo tivesse decidido poupá-lo. Em certos momentos, é possível sentir o vento passando pelas ruas e ouvir o murmúrio distante da água, como se o som e a imagem tivessem recuperado algo perdido da própria infância.
Mesmo sem trazer nada de “novo” em termos narrativos, sobretudo para Aniki-Bóbó é um desses filmes que reafirmam a beleza do que é essencial. Oliveira constrói uma fábula popular, próxima de Chaplin e das aventuras da Turma da Mônica ou dos Batutinhas, mas que em seu fundo abriga o mesmo humanismo que anos depois se tornaria marca de seu cinema mais abstrato e filosófico. O humor é leve, o melodrama sutil, e há uma ternura imensa na forma como as relações entre as crianças se desenham – amores, ciúmes, reconciliações. Tudo é pequeno, mas absolutamente verdadeiro.
O Porto visto pelos olhos dessas crianças é um espaço de encantamento e aprendizado, um mundo onde o real e o poético convivem sem atrito. E é nessa simplicidade – e nessa recusa em transformar a infância em símbolo – que reside a força do filme. Aniki-Bóbó é uma ode à pureza e à curiosidade, um registro amoroso de um tempo e de um olhar que só o cinema, em sua forma mais sincera, poderia eternizar. Um filme tão singelo e tão genuíno que, mesmo sem grandes inovações, diverte, emociona e faz o espectador sair dele acreditando que Manoel de Oliveira filmou a própria essência do que significa ser criança.
Sombra do Meu Pai

A Sombra do Meu Pai é daquelas obras que, sem reinventar nada, impressionam pela honestidade com que olham para o mundo. Akinola Davies Jr. transforma lembranças em matéria de cinema e, a partir dessa memória pessoal, encontra um modo de narrar que mistura o concreto da vida em Lagos com o sonho de uma infância que já se perdeu. Há algo profundamente humano nesse olhar: o filme não tenta explicar, tampouco simplificar. Ele observa, registra e sente. E essa economia emocional é o que o torna tão poderoso.
A história gira em torno de dois irmãos tentando compreender o pai e o país que os cerca, mas o que realmente interessa aqui é a forma como Davies Jr. filma essa distância, esse amor cheio de lacunas. A estrutura lembra “A Melhor Mãe do Mundo”, de Anna Muylaert – não pela semelhança de enredo, mas pela precisão racional da direção, pela escolha de um enquadramento que nunca invade o íntimo, apenas o observa com respeito. Essa racionalização da mise-en-scène, tão pensada quanto contida, é o que dá ao filme uma força emocional quase silenciosa. O drama nunca é sublinhado: é sentido nos gestos, nas pausas, no som abafado da cidade que parece respirar junto com os personagens.
O trabalho de fotografia de Jermaine Edwards é excepcional. Filmado em 16mm, o longa tem uma textura que lembra um sonho envelhecido – cada plano parece conter um grão de memória. Lagos surge vibrante e exausta, uma cidade que pulsa e se desfaz ao mesmo tempo. As luzes, o calor, a poeira e os tons amarelados dão ao filme uma fisicalidade impressionante. Não há o brilho artificial de um cartão-postal, mas uma beleza que nasce da vida real, das imperfeições. A câmera é ao mesmo tempo íntima e respeitosa: se aproxima dos rostos sem invadi-los, capta o suor, o olhar hesitante, a ternura que insiste em existir mesmo quando tudo desmorona.
O elenco, formado em parte por atores não profissionais, alcança uma naturalidade rara. As crianças que interpretam os irmãos trazem uma química irresistível, feita de pequenos gestos que dispensam qualquer afetação. Eles são curiosos, confusos, autênticos — e é nesse retrato da inocência que o filme se aproxima da infância universal. Já Ṣọpẹ́ Dìrísù, no papel do pai, oferece um contraponto de força contida: um homem que tenta proteger, mas também falha, e em cuja rigidez mora o medo de perder o que ama.
O som – meticulosamente construído – é um personagem à parte. A alternância entre ruídos do cotidiano, o eco distante de rádios e vozes, e a música melancólica cria uma paisagem emocional que se mistura ao próprio tecido da narrativa. É um filme que se ouve tanto quanto se vê, onde o silêncio também comunica.Mesmo sem grandes surpresas narrativas, A Sombra do Meu Pai tem a beleza dos filmes que acreditam na sinceridade das pequenas histórias. Não quer chocar, quer apenas recordar. É sobre o amor que se manifesta nas falhas, sobre o tempo que transforma a lembrança em ficção. E, nesse processo, Davies Jr. encontra algo raro: uma poesia que nasce do real, filmada com rigor e emoção medida. Um cinema que, pela contenção, revela sua delicadeza.
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