49ª Mostra | Richard Linklater em dose dupla: Blue Moon e Nouvelle Vague
Colagem: Conecta Geek

49ª Mostra | Richard Linklater em dose dupla: Blue Moon e Nouvelle Vague

Durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, encontrei em Blue Moon e Nouvelle Vague duas faces distintas de Richard Linklater – e, de certa forma, duas maneiras de olhar para a biografia no cinema. Enquanto um se constrói como um retrato íntimo, contido e quase teatral de um artista em crise, o outro se abre como uma celebração expansiva, coletiva e divertida da história do cinema moderno. São filmes que dialogam entre si na forma e no corte: um preso a um único espaço e à densidade da palavra, o outro em constante movimento, girando ao redor de ícones e gestos que moldaram uma geração. Ambos revelam o mesmo diretor curioso e amoroso diante da criação, alternando entre o silêncio e o riso, entre o palco e a história — duas biografias filmadas com a leveza de quem ainda acredita que o cinema pode ser, acima de tudo, um ato de afeto.

Blue Moon

Quando me sentei para assistir Blue Moon, sabia apenas o nome do filme e o nome do diretor, Richard Linklater. Foi o suficiente. Não precisei de mais informações. O que eu encontrei foi um filme tão sincero em sua proposta que, mesmo sem trazer nada realmente novo, se torna cativante e memorável.

49ª Mostra | Richard Linklater em dose dupla: Blue Moon e Nouvelle Vague
Divulgação

O protagonista, interpretado de forma magistral por Ethan Hawke, é Lorenz Hart, um aclamado letrista – que, confesso, não fazia a mínima ideia que quem seja antes de assistir ao filme. Hart é um personagem cheio de contrastes. Sua fala fervilhante, seu corpo inquieto e seu humor escondem uma profundidade emocional muito maior. Ele é o tipo de pessoa que pode fazer uma piada até nos momentos mais sombrios, mas no fundo, esconde uma solidão que o persegue. Hawke traz uma performance tragicômica, mostrando um homem profundamente desconectado, mas ainda lutando para encontrar sua redenção. A cada palavra, a cada gesto, ele transforma o personagem de Hart em algo mais do que uma caricatura de gênio artístico. Ele se torna real.

A maior beleza do filme, no entanto, está na maneira como ele aproveita os recursos mais simples e, ao mesmo tempo, mais poderosos: o texto e o tempo. Linklater, como sempre, cria uma narrativa que flui com naturalidade. Embora o filme seja quase todo centrado em um único espaço, ele nunca se sente preso. Cada cena é cuidadosamente orquestrada, com a duração exata para que a tensão, o humor e a melancolia se revelem aos poucos. Blue Moon poderia facilmente cair na armadilha do sentimentalismo barato de filmes como “A Vida de Chuck”, mas ele se mantém firme em sua delicadeza, equilibrando de maneira precisa a nostalgia com a realidade dolorosa de um artista envelhecendo e perdendo suas ilusões.

A química entre os personagens é outro ponto forte do filme. Se Hawke é a força que move a história, o ator Patrick Kennedy, no papel de E.B. White, desempenha um papel crucial ao fornecer a estabilidade emocional que Hart precisa, mesmo sem ser o centro das atenções. Sua presença discreta contrasta com o turbilhão de emoções de Hart, e a forma como ele escuta, sem pressa de reagir, cria uma dinâmica que dá profundidade ao filme. Ele não rouba a cena, mas a sustenta com a mesma graça com que Hart tenta encontrar equilíbrio em sua própria vida.

No aspecto visual, Blue Moon se destaca pela simplicidade estética, mas é exatamente essa simplicidade que traz à tona a carga emocional do filme. Cada tomada parece ter sido pensada para refletir o desgaste do tempo e o reflexo do passado perdido. As cores suaves e a iluminação suave criam uma atmosfera de nostalgia, mas sem nunca cair na tentação da melancolia excessiva. O filme se vale do espaço, das palavras e do silêncio para comunicar mais do que os diálogos poderiam expressar sozinhos.

Blue Moon é uma celebração da arte e da performance, sem nunca perder a sinceridade de sua essência. É um filme de atores, de falas e de momentos de quietude emocional que nos fazem refletir sobre o que é criar, viver e envelhecer. É profundamente tocante esse retrato de um artista lutando para manter sua própria identidade em meio ao caos. E, sinceramente, isso foi mais do que suficiente para que eu me apaixonasse por ele.

Nouvelle Vague

49ª Mostra | Richard Linklater em dose dupla: Blue Moon e Nouvelle Vague
Divulgação

Confesso que, mesmo gostando de Richard Linklater, entrei em Nouvelle Vague com um certo receio. Um diretor americano revisitando a gênese da Nouvelle Vague francesa soa, no mínimo, como uma travessia arriscada – a de transformar um dos momentos mais libertários da história do cinema num museu de cera para cinéfilos. Mas o que poderia facilmente ter se tornado uma homenagem engessada, um “filme de cinéfilo para cinéfilos”, revela-se algo muito mais leve, espirituoso e, surpreendentemente, divertido. Linklater, que sempre filmou melhor as pessoas do que as ideias, encontra humanidade até nas poses mais mitificadas de Godard, Truffaut e companhia.

O filme acompanha os bastidores da produção de “Acossado”, ponto de partida da Nova Onda. Linklater não tenta reinventar nada; ele apenas observa. Sua câmera, fluida e curiosa, capta a convivência desses jovens apaixonados por cinema como quem filma um grupo de amigos tentando mudar o mundo a partir de uma câmera leve e muita insolência. O resultado é um retrato afetuoso, meio caótico, da efervescência criativa que redefiniu o cinema moderno.

Tecnicamente, o diretor parece buscar o mesmo despojamento dos franceses dos anos 60, com cortes secos, câmera na mão e diálogos que soam improvisados. Mas a mise-en-scène de Linklater é menos rebelde que calorosa. A fotografia em preto e branco, de textura limpa demais para o grão da época, denuncia o distanciamento histórico – ainda assim, funciona como gesto de reverência. O ritmo solto e a montagem brincalhona dão ao filme um tom de ensaio vivo, no qual cada cena é menos uma reconstituição e mais um estado de espírito: o prazer de fazer cinema entre amigos.

Guillaume Marbeck faz um Godard quase impagável, cheio de tiques, ironias e charme involuntário; Aubry Dullin encarna Belmondo com a leveza de um estudante que ainda não entendeu o tamanho da revolução que está prestes a iniciar; e Zoey Deutch dá a Jean Seberg uma doçura luminosa, capaz de iluminar o preto e branco. O trio funciona como um centro magnético dentro de um elenco repleto de aparições-relâmpago de nomes lendários – Truffaut, Chabrol, Rohmer, Rivette, até uma piscadela à Varda. É um desfile de ícones que faz o espectador sorrir de reconhecimento, mesmo quando não reconhece todos. Nesse sentido, Nouvelle Vague é quase um “Vingadores” da cinefilia: uma reunião improvável de heróis do cinema moderno, convocados para uma última celebração.

Claro, há quem cobre profundidade histórica – e com razão. Linklater escolhe o afeto em vez da precisão, e seu filme não explica o movimento tanto quanto o sonha. Talvez por isso falte a centelha revolucionária da Nouvelle Vague original. Mas tudo bem. Nouvelle Vague não quer ser um novo Acossado; quer ser um brinde a ele, à amizade, à paixão pelo cinema e à alegria de reencenar um mito com a sinceridade de quem ainda acredita na arte como conversa entre gerações.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.