Eu nunca fui do tipo que torce o nariz para a chamada “disneyficação” das grandes franquias. Na verdade, sempre achei esse discurso um tanto cansado – uma espécie de refúgio nostálgico para quem não aceita que o cinema popular se transforma junto com o público. Gosto, por exemplo, de “Andor”, que é, para mim, uma das produções mais sofisticadas de todo o universo “Star Wars”, e também defendi “Predador: A Caçada” como um dos melhores retornos recentes de um ícone dos anos 80. Mas há algo em Predador: Terras Selvagens que me deixou dividido, não por conservadorismo, e sim por perceber que, em sua tentativa de modernizar o monstro, o filme acabou suavizando aquilo que o tornava fascinante. É uma história que tenta ser íntima, até comovente, mas em algum ponto da jornada troca a selvageria pelo afeto, o instinto pela empatia – e, com isso, perde parte do brilho que fez o Predador ser, um dia, o caçador supremo do cinema.
A nova empreitada de Dan Trachtenberg começa com uma ideia instigante: inverter o olhar e fazer do Yautja o protagonista. A escolha é corajosa – afinal, estamos acostumados a ver essas criaturas como símbolos do horror e da caça implacável, não como heróis de jornada interior. Aqui, acompanhamos Dek, vivido por Dimitrius Schuster-Koloamatangi, um jovem predador expulso de seu clã por ser pequeno demais e considerado fraco. A partir daí, ele embarca numa missão de sobrevivência e redenção em um planeta hostil, onde cada detalhe do ambiente parece feito para testá-lo. A história se aproxima de uma fábula sobre amadurecimento, e não há problema algum nisso. O problema é que, ao buscar emoção, o filme parece se esquecer da tensão.
Trachtenberg continua sendo um diretor de impressionante domínio visual. Sua capacidade de criar atmosferas tangíveis segue intacta. A abertura de Terras Selvagens é um espetáculo de textura e imaginação: planícies cortadas por ventos de poeira metálica, florestas de gramíneas afiadas e uma fauna alienígena que mistura o bizarro ao hipnótico. A fotografia, assinada por Jeff Cutter, repete a parceria com o diretor e aposta em contrastes marcantes entre o verde azulado das paisagens e o âmbar quente das explosões e dos reflexos de plasma. É um filme que se sustenta visualmente mesmo quando a narrativa patina – e não são poucas as vezes.

A trilha sonora composta por Sarah Schachner e Benjamin Wallfisch é um dos grandes acertos: mistura percussões tribais com sintetizadores modernos, criando uma atmosfera de constante movimento. Há momentos em que a música parece literalmente respirar com as criaturas, tornando a experiência quase sensorial. A montagem, por outro lado, padece de um ritmo irregular. O primeiro ato é vigoroso, cheio de energia e mistério, mas o segundo se alonga em diálogos explicativos e sequências de ação genéricas, até que o terceiro ato – embalado por um clímax previsível – tenta resgatar o fôlego com cenas espetaculares, porém emocionalmente esvaziadas.
Há uma construção quase pictórica na composição dos quadros. Cada tomada parece pensada para revelar o esplendor da produção, com criaturas e cenários que saltam aos olhos. A direção de arte é generosa em detalhes: os trajes dos Yautja combinam materiais orgânicos e tecnologia futurista com um equilíbrio admirável. No entanto, é impossível não notar que boa parte da fisicalidade que marcava o “Predador” original – aquele senso tátil de criaturas realmente presentes – cedeu espaço a efeitos digitais excessivos. O uso de CGI aqui é fluido, bem-acabado, mas paradoxalmente menos convincente. Onde antes havia suor, barro e sangue espesso, agora há brilhos cintilantes e respingos de um verde viscoso que mais parece geleca. É um filme bonito de ver, mas pouco de sentir.
Essa transição estética conversa diretamente com o tom narrativo. Terras Selvagens parece ter sido moldado para se adequar a um público mais amplo – e, talvez, mais jovem. Não há gore, nem a sensação de perigo que definia os encontros com o Predador. Mesmo as mortes, quando ocorrem, são limpas, rápidas, quase elegantes. A violência virou um espetáculo coreografado, e não uma ameaça. É claro que isso não é um pecado em si; existem inúmeras formas de filmar a brutalidade sem recorrer à mutilação. Mas aqui, a suavização parece vir menos de uma escolha estética e mais de um receio de chocar. O resultado é um filme que entretém, mas raramente inquieta.
O roteiro, escrito pelos próprios Trachtenberg e Patrick Aison (“Planeta dos Macacos: O Reinado”), alterna bons momentos de introspecção com clichês emocionais. O arco de Dek é previsível: o herói rejeitado que precisa provar seu valor. Até aí, tudo bem. O problema é quando o filme tenta humanizar demais o personagem, aproximando-o perigosamente de figuras que pertencem a outras franquias. E um Predador simpático é, convenhamos, um contrassenso fascinante, porém difícil de sustentar.
A relação entre Dek e Thia, uma androide interpretada com grande sensibilidade por Elle Fanning, é o núcleo emocional do longa. Ela é, em tese, o contraponto racional e compassivo do protagonista, e os melhores momentos do filme surgem justamente dessa dinâmica. Fanning, como de costume, encontra nuances em diálogos simples e confere à personagem uma humanidade tocante – o que é irônico, considerando que ela interpreta uma máquina.

Mas o roteiro, ansioso por suavizar o tom, insiste em transformar essa parceria em algo próximo de uma amizade buddy movie (subgênero focar em uma dupla, geralmente de personalidades contrastantes, que embarca em uma aventura ou missão), com piadas que destoam do ambiente e um sentimentalismo que dilui a tensão. Quando o filme deveria mergulhar no desespero da sobrevivência, ele opta pelo conforto da cumplicidade.
A direção de Trachtenberg mostra brilho em sua habilidade de conceber mundos, mas menos vigor em conduzir conflitos. Ele é um cineasta que entende o poder da imersão, o problema é que Terras Selvagens parece ser um filme dividido entre o olhar do artista e a mão firme do estúdio. Há, em vários momentos, a sensação de que o diretor quer levar a história para um território mais sombrio, mas o roteiro o puxa de volta para a zona segura das fórmulas familiares. O resultado é uma obra tecnicamente primorosa, mas emocionalmente domesticada.
Ainda assim, seria injusto dizer que o filme não tem méritos. O design das criaturas, a imaginação nos detalhes do ecossistema e a fluidez das cenas de ação mostram um cuidado genuíno com o universo criado. Há uma curiosidade honesta em expandir a mitologia dos Yautja, em explorar sua cultura, seus rituais, sua espiritualidade quase mística. Essas passagens são as mais interessantes e revelam que havia material para algo verdadeiramente novo. Infelizmente, são também as partes que o filme parece mais ansioso para abandonar, como se tivesse medo de se tornar complexo demais.

No final, Predador: Terras Selvagens é um filme que brilha na superfície, mas hesita em morder. Tenta reinventar um ícone, mas termina por transformá-lo num herói domesticado, pronto para vender bonecos e emocionar famílias. É, em certo sentido, a versão mais paradoxal de um Predador: bela, envolvente e… quase inofensiva. Ainda assim, há um toque de melancolia em perceber que, por trás de toda essa aparência polida, persiste o eco de algo maior – o desejo de ver de novo aquele monstro que não precisava de redenção, nem de afeto, para ser grandioso.
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