Crítica | Caso Eloá: Refém ao Vivo – A adolescente que foi morta para o entretenimento nacional
Netflix/Divulgação

Crítica | Caso Eloá: Refém ao Vivo – A adolescente que foi morta para o entretenimento nacional

Documentário desmonta o mito do 'crime por amor' e escancara a responsabilidade da mídia

Em outubro de 2008, o Brasil parou para assistir a um sequestro que aconteceu em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, mais conhecida como parte do ABC Paulista. Por mais de cem horas, câmeras de televisão ficaram apontadas para o apartamento de Eloá Pimentel, uma adolescente de 15 anos mantida refém pelo ex-namorado, Lindemberg Alves, de 22 anos. Era uma cobertura jornalística mascarada de prestação de serviço, mas o que se construiu ali foi um roteiro de tragédia anunciado, transmitido em tempo real e com a cumplicidade de quem filmava, de quem assistia e de quem deveria agir. O caso virou símbolo do fracasso coletivo de um país que naturaliza a violência contra mulheres e chama de amor o que é controle e possessão.

O documentário Caso Eloá: Refém ao Vivo, disponível na Netflix, revisita esse episódio sem anestesia, reconstruindo o cerco policial e ouvindo repórteres, negociadores, familiares e pessoas que estavam dentro daquela bolha de pânico e exposição. O título já entrega a denúncia central: Eloá foi feita refém por Lindemberg, mas também pela mídia, que a exibiu como espetáculo. O filme não apenas narra os acontecimentos, ele confronta o absurdo de uma cobertura que tratou o feminicídio como entretenimento, como se cada movimento, cada grito, cada lágrima de dentro do apartamento fossem cenas de um programa ao vivo.

“Lindemberg com uma arma na mão e a imprensa com outra”,  é essa a imagem que fica. A produção mostra como o agressor foi transformado em personagem, quase em protagonista, enquanto Eloá foi reduzida à menina que não quis voltar com o namorado. O papel de anti-herói que Lindemberg assumiu, alimentado pela narrativa jornalística, é um retrato da distorção que atravessa nossa forma de olhar para a violência. Ele virou o homem “desesperado de amor”, o rapaz “sem controle”, o que “amava demais”. O documentário deixa claro que o problema não era só o ato violento, mas a forma como ele foi contado, a romantização do crime passional virou um escudo para esconder a palavra que realmente define o que aconteceu: feminicídio.

Crítica | Caso Eloá: Refém ao Vivo – A adolescente que foi morta para o entretenimento nacional
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“Você acha que isso é amor?” Essa pergunta aparece como um soco ao longo do filme,  e ela não é retórica. Ela desmonta o mito do amor que mata, o mito da mulher culpada por não querer mais, o mito de que violência é desespero e não escolha. O caso de Eloá expôs o quanto o país falha com suas meninas desde cedo. Ela tinha 12 anos quando começou a se relacionar com Lindemberg, que tinha 19… Um crime que ninguém nomeou como deveria: pedofilia.

A negligência começou muito antes do sequestro. Ela foi vítima da família, que aprovou um relacionamento quando ela tinha apenas 12 anos (triste, mas é verdade); do Estado, que não permitiu a ação policial; da polícia, extremamente mal preparada; e, por fim, da imprensa, que via em cada take a chance de dar um furo jornalístico. Cada um desses agentes, por omissão ou conveniência, participou de um mesmo roteiro de abandono.

O documentário traz depoimentos de policiais e negociadores que estavam na linha de frente e o que mais choca é o teatro da hesitação. O Estado preferiu preservar a própria imagem a salvar uma vida, o comando não liberou os snipers porque não queria “manchar a reputação” da Polícia Militar de São Paulo. Enquanto isso, do lado de fora, repórteres disputavam quem teria a imagem mais dramática, quem entrevistaria os amigos, quem mostraria primeiro o choro da mãe: era um circo. Entre mídia e polícia, um jogava a culpa no outro e, no meio disso, estava uma menina apavorada que virou produto de comoção.

A comoção virou mercadoria, a cobertura do caso foi tratada como evento nacional, com flashes, vinhetas, comentaristas e atualizações a cada minuto. O documentário mostra isso com frieza e sem didatismo, expondo o retrato de um país que lucra com o sofrimento. E ainda assim, em alguns momentos, a própria produção parece tropeçar no mesmo terreno escorregadio que critica. Há uma linha tênue entre recontar a tragédia e repeti-la. A reconstrução de algumas cenas, o uso de imagens de arquivo, a dramatização silenciosa, tudo isso provoca o desconforto de reviver a espetacularização que o filme tenta condenar. Talvez esse seja o ponto: a impossibilidade de contar essa história sem se contaminar por ela.

Crítica | Caso Eloá: Refém ao Vivo – A adolescente que foi morta para o entretenimento nacional
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Ver Caso Eloá: Refém ao Vivo é confrontar uma ferida aberta, sem distância emocional possível. A cada depoimento, o que emerge é a banalização da violência de gênero disfarçada de normalidade. E no fim o documentário impõe a pergunta que nenhuma instituição quis fazer: por que uma menina de 15 anos foi deixada sozinha com um homem armado enquanto o país assistia?

A resposta está no modo como o Brasil escolhe narrar seus crimes. A imprensa ainda tropeça nas mesmas justificativas, a polícia ainda protege a própria reputação, o público ainda consome tragédia como entretenimento. Quantas Eloás a gente ainda vai ver na mídia? Quantas histórias de meninas assassinadas ainda serão tratadas como dramas de amor mal resolvido? Quantas vezes a gente vai assistir, comentar e seguir a vida como se fosse só mais um episódio?

Caso Eloá: Refém ao Vivo não é um documentário sobre o passado, é sobre o agora. Sobre o silêncio que se disfarça de neutralidade, sobre a passividade que mata junto, sobre o país que ainda confunde violência com paixão. Eloá não foi exceção, foi aviso. A pergunta que ecoa quando os créditos sobem é a mesma que atravessa todo o documentário, cravada como uma cicatriz: você acha que isso é amor?

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Jornalista e formada em Cinema, apaixonada por cultura asiática e por contar histórias. Provavelmente já assisti tanto aos filmes do Adam Sandler que poderia atuar em qaulquer um sem precisar de roteiro.