Após a exuberância quase caricata de “Glass Onion”, que levou a assinatura estética e narrativa de Netflix a um extremo festivo, Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out representa um retorno calculado e ambicioso às raízes góticas e atmosféricas do primeiro filme da franquia. Rian Johnson, assumindo novamente o leme da direção e do roteiro, parece consciente dos excessos do capítulo anterior e busca recalibrar a balança, mergulhando o detetive Benoit Blanc em um cenário sombrio: o claustrofóbico e hierárquico mundo de uma igreja e sua comunidade. O resultado é um filme mais intrincado e visualmente denso, que tenta equilibrar a fórmula agora estabelecida da série com uma pretensão de maior profundidade temática, nem sempre com sucesso integral, mas com momentos de brilho inegável.
No 3º capítulo de Knives Out, o detetive Benoit Blanc conta com a ajuda de um jovem padre para investigar um crime perfeitamente impossível na igreja de uma cidadezinha que tem uma história sombria.
Do ponto de vista técnico, este é, sem dúvida, o filme mais ambicioso da trilogia. A fotografia, assinada por Steve Yedlin, colaborador de longa data de Johnson, é um personagem à parte. Ela abandona a saturação quase plástica de Glass Onion para adotar uma paleta terrosa, sombria, pontuada por rajadas de luz divina que não são meros recursos estéticos, mas elementos narrativos cruciais.
Há uma cena particularmente memorável: quando o personagem do padre Philip, interpretado pelo novo queridinho de Hollywood Josh O’Connor, discute sua fé com Benoit Blanc (Daniel Craig), a luz do sol irrompe por um vitral, banhando-o em um hall dourado. Esse momento transcende o diálogo. A luz não ilustra somente um discurso sobre religião; ela materializa visualmente o argumento do personagem sobre narrativas, sobre a busca humana por sentido e beleza em meio ao caos. É cinema contando uma história através da própria imagem.

A direção de arte e a construção deste microcosmo religioso são meticulosas, criando um ambiente palpável de tradição, poder e segredos. A igreja, com seus corredores escuros, confessionários e salas austeras, funciona como um labirinto gótico moderno, um cenário perfeito para um mistério pretendido mais sombrio. Johnson demonstra um controle firme sobre o ritmo, permitindo que a atmosfera respire e a tensão se acumule, principalmente na primeira metade do filme.
No entanto, é justamente na montagem e no ritmo narrativo que alguns dos problemas crônicos da franquia, intensificados aqui, surgem. Com uma duração que se aproxima das duas horas e meia, o filme peca por uma verborragia excessiva. As cenas de investigação e, principalmente, o grand finale explicativo, parecem alongados além do necessário, como se o filme estivesse tão enamorado de sua própria teia de intrigas que temesse que o público não apreciasse cada fio minuciosamente desvendado. Essa é uma armadilha comum em narrativas de mistério, e Vivo ou Morto não escapa totalmente dela.
O elenco, como de praxe, é estelar, mas a utilização dos talentos é desigual. Daniel Craig, encontra-se curiosamente mais escanteado em sua própria franquia, só entrando em ação plena após um considerável tempo de tela. Isso, porém, pode ser lido como uma virtude disfarçada: a série sempre foi mais sobre o ecossistema de suspeitos do que sobre o detetive propriamente dito. E é nesse ecossistema que brilham as atuações mais marcantes. O’Connor, como o jovem padre em crise, entrega a atuação mais multifacetada do filme. Seu personagem é um contraponto humano e cheio de contradições ao fanatismo fascistoide e ferozmente vivido por Josh Brolin, que interpreta um líder religioso autoritário. A dinâmica entre eles é o motor temático mais interessante da trama, explorando a luta entre dúvida e certeza cega, entre fé autêntica e dogma político.
Glenn Close, em um papel aparentemente menor, rouba cenas com uma presença silenciosa e cheia de camadas, representando uma devoção que é tanto brandura quanto fortaleza. Outros nomes do extenso elenco, no entanto, ficam um tanto apagados, servindo mais como peças no tabuleiro do que como personagens completamente realizados. Esse é um risco inerente ao formato whodunit – histórias de mistério policial ou de assassinato focadas em descobrir o criminoso – com muitos suspeitos, mas que aqui se faz sentir um pouco mais.

Rian Johnson, ao abordar a instituição religiosa, tenta um caminho mais nuances do que um simples ataque cínico. O filme descasca as hipocrisias e os mecanismos de controle da igreja, mas o faz ancorando-se na possibilidade de uma fé genuína, colocando-a em diálogo (e conflito) com conceitos modernos como a pós-verdade. No entanto, interrompida pela necessidade de avançar a trama ou por um toque de ironia que, embora menor que em Glass Onion, ainda persiste. O filme parece hesitar entre ser uma sátira e um drama de mistério sombrio, e essa indecisão tonal impede que ele alcance a potência crítica plena de seu tema.
Vivo ou Morto é, em suma, um retorno à forma mais bem-sucedida que uma franquia comercial pode almejar após um desvio. É mais sombrio, mais bonito e mais ambicioso tematicamente que seu predecessor imediato. Herda do primeiro “Knives Out” a estrutura labiríntica e o prazer de ver um quebra-cabeça sendo montado, mas não consegue recuperar totalmente o charme e a surpresa originais, perdidos no inevitável familiaridade da fórmula. As obviedades sobre o cenário sociopolítico atual são perceptíveis, mas são embaladas em uma produção de alto nível técnico.
Embora sofra dos problemas crônicos de uma franquia que já estabeleceu suas regras – uma fórmula de resolução previsível, um certo excesso verbal e uma duração generosa demais –, é um deleite no sentido puro da diversão. Ver as engrenagens bem oleadas de um mistério de Rian Johnson funcionando, com um elenco talentoso e uma fotografia deslumbrante, ainda é um prazer raro no cinema mainstream. Vivo ou Morto não supera o primeiro ato da série, mas prova que ela ainda tem espaço para se reinventar e, principalmente, que uma produção Netflix pode, quando há talento e intenção por trás das câmeras, possuir cor, contraste, profundidade e, acima de tudo, luz própria.
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