Hamnet: A Vida Antes de Hamlet parte de um princípio emocional quase violento: conduzir o espectador por uma experiência de perda tão intensa que ela se aproxima de uma agressão sensorial. Chloé Zhao, que outrora esteve na Marvel, dessa vez, aparece com o controle total nesse projeto. Cada decisão estética, cada escolha de enquadramento, som ou ritmo parece desenhada para aproximar o público de um estado de vulnerabilidade extrema. É um cinema que simplesmente dói.
Desde os primeiros minutos, o filme se impõe menos como uma narrativa tradicional e mais como uma vivência sensorial. Antes mesmo que os eventos centrais se organizem de forma clara, Zhao estabelece um universo onde o cotidiano e o sobrenatural coexistem sem atrito. A floresta que cerca a história não funciona somente como cenário, mas como extensão emocional da protagonista. A câmera de Lukasz Zal transforma árvores, vento e terra em entidades quase pulsantes. Não se trata de embelezamento gratuito, a natureza aqui é um estado de espírito, um reflexo do mundo interno de Agnes (Jessie Buckley).

Essa opção estética dialoga diretamente com a personagem vivida por Buckley, apresentada como alguém profundamente conectada ao ambiente ao seu redor, herdeira de um saber ancestral que mistura intuição, espiritualidade e sobrevivência. A direção escolhe mostrar essa ligação de maneira visual e física, usando planos abertos, movimentos lentos e uma composição que frequentemente coloca o corpo humano como pequeno diante da paisagem. O filme quer que você sinta o espaço, não apenas o veja. A floresta respira, observa e, em certos momentos, parece sofrer junto.
Quando a narrativa avança para o encontro entre Agnes e William Shakespeare, interpretado por Paul Mescal, a diretora adota um registro mais leve, quase lúdico. O romance nasce de gestos, olhares e deslocamentos pelo espaço, reforçando a ideia de que essa relação se constrói na liberdade e na aceitação das diferenças. A montagem privilegia a fluidez, evitando cortes bruscos, criando a sensação de que o tempo escorre de forma orgânica. É um recurso que ajuda a estabelecer empatia: acompanhamos aquele casal como se estivéssemos vivendo ao lado deles, sem pressa para chegar a um conflito.
Essa estratégia se estende à representação da vida familiar. As cenas com os filhos são marcadas por uma naturalidade que contrasta fortemente com o peso que virá depois. Aqui, Zhao demonstra habilidade ao trabalhar com atores mirins, permitindo que o improviso e o gesto espontâneo tenham espaço.

O resultado é uma sensação de verdade emocional difícil de fabricar. Quando o filme se detém em brincadeiras, pequenos ensinamentos ou discussões banais entre os pais, ele constrói algo fundamental: um cotidiano que vale a pena ser perdido. Sem isso, o impacto do luto seria apenas abstrato.
O destaque, claro, fica todo para Jacobi Jupe como Hamnet, com uma dessas atuações infantis para ficar marcadas na história.

A morte de Hamnet, no entanto, rompe violentamente esse equilíbrio. E é nesse ponto que o filme se torna mais controverso. A direção opta por uma abordagem frontal e intensa do sofrimento, especialmente através das performances de Buckley e Mescal. O luto é gritado, chorado, exposto em sua forma mais crua. Zhao prolonga os momentos de dor, recusa elipses e força o olhar do público a permanecer ali. A sensação é de voyeurismo emocional, como se não houvesse espaço para respirar. Ainda assim, essa opção não é gratuita: ela reflete a impossibilidade de elaborar a perda quando ela ainda é recente demais.
A trilha sonora de Max Richter atua como um fio condutor emocional, mas sem dominar as cenas. Em vez de sublinhar cada emoção, a música surge espaçadamente, quase como um eco distante. Já o trabalho de som, assinado por Johnnie Burn, reforça a materialidade do mundo: passos, folhas, respirações e silêncios têm peso dramático. Para o público leigo, isso significa que o filme não depende apenas de diálogos para emocionar; ele usa o som como linguagem narrativa, criando tensão e intimidade sem precisar explicar tudo em palavras.
A conexão com “Hamlet” (a peça) surge de maneira cada vez mais explícita na reta final, especialmente quando o teatro entra em cena. Aqui, Zhao propõe uma reflexão clara sobre a arte como ferramenta de elaboração do trauma. A encenação da peça dentro do filme não é apenas um recurso metalinguístico, mas uma tradução visual da ideia de que o sofrimento pode ser reorganizado, transformado em algo compartilhável. A escolha de escalar Noah Jupe – irmão mais velho e Jacobi – como o ator que interpreta Hamlet cria uma camada simbólica poderosa, sugerindo uma vida interrompida que encontra continuidade na representação artística.

Ainda assim, nem todas as decisões funcionam com a mesma sutileza. Algumas referências diretas ao texto shakespeariano soam excessivamente didáticas, quase como se o filme desconfiasse da capacidade do público de estabelecer conexões por conta própria. O uso de um letreiro explicativo logo no início, estabelecendo a equivalência entre os nomes Hamnet e Hamlet, exemplifica esse problema. Esse tipo de sublinhado enfraquece a inteligência do espectador e revela uma insegurança narrativa que contrasta com a força visual do restante da obra.
Apesar dessas ressalvas, é impossível ignorar o impacto emocional do conjunto. Hamnet: A Vida Antes de Hamlet talvez não encontre equilíbrio perfeito entre contenção e excesso, mas sua ambição é clara. Zhao quer provocar, ferir, desestabilizar. O filme entende o luto não como um processo linear, mas como um estado caótico, repetitivo e, muitas vezes, insuportável. Ao fazer isso, ele se aproxima perigosamente do melodrama forçado, mas também alcança momentos verdadeiramente impactantes.
No final das contas, o que permanece é a ideia que atravessa toda a obra: a arte como tentativa desesperada de dar forma ao indizível. Se o cinema aqui pratica uma espécie de “terrorismo emocional”, ele o faz com consciência e propósito. A dor exibida busca comunicação, reconhecimento e, talvez, algum tipo de cura. Hamnet funciona melhor quando ele se posiciona em uma obra sobre como podemos transformar perda em linguagem – e sobre o preço que pagamos por isso.
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