Brigitte Bardot (atriz de “Don Juan ou Se Don Juan fosse Mulher”) morreu no domingo (28), aos 91 anos, em sua casa em Saint-Tropez, no sul da França. A morte foi confirmada pela Fundação Brigitte Bardot, instituição que ela mesma presidia. A causa não foi divulgada oficialmente. Nos últimos meses, Bardot enfrentava problemas de saúde, havia passado por uma cirurgia em outubro e, desde então, vivia reclusa, longe da vida pública.
A notícia encerra uma trajetória que nunca foi simples de resumir. Bardot foi, ao mesmo tempo, um dos rostos mais revolucionários da história do cinema e uma das figuras públicas mais controversas da França nas últimas décadas. Sua imagem ajudou a mudar a forma como o desejo feminino era visto nas telas, mas sua voz, fora delas, passou a ecoar discursos de exclusão, intolerância e alinhamento com a extrema direita europeia.E falar de Brigitte Bardot é lidar com esse conflito sem atalhos.
Quando apareceu no cinema, nos anos 1950, Bardot parecia deslocada dentro do próprio sistema que a consagrou. Ela não se encaixava no arquétipo da mulher fatal clássica nem na figura da musa passiva. Havia algo de indomável ali. Em “E Deus Criou a Mulher” (1956), dirigido por Roger Vadim (diretor de “Don Juan ou Se Don Juan fosse Mulher”), Bardot não interpreta uma mulher que precisa pagar pelo desejo que sente. Sua personagem existe sem culpa, sem pedido de desculpas e sem a necessidade de ser corrigida pela narrativa.

Isso foi suficiente para escandalizar plateias, críticos e censores. O filme foi alvo de proibições e ataques, mas também marcou uma ruptura. Pela primeira vez, o cinema popular europeu colocava o desejo feminino no centro sem o enquadrar como desvio moral. Bardot não era somente sensual. Ela era ativa, dona do próprio corpo e da própria vontade.
Essa imagem se cristalizou rapidamente. O cabelo solto, a dança descalça, como ocupava o espaço em cena se tornaram referências visuais que atravessariam décadas. Bardot virou um ponto de virada. Não só para o cinema francês, mas para a cultura pop como um todo.
Nos anos 1960, ela já era uma estrela global. Trabalhou com alguns dos diretores mais importantes do período, como Jean-Luc Godard (diretor de “O Adeus à Linguagem”), em “O Desprezo” (1963), Henri-Georges Clouzot (diretor de “A Verdade”), em “A Verdade” (1960), e Louis Malle (diretor de “Adeus, Meninos”), em “Viva Maria!” (1965). Esses filmes ajudaram a consolidar sua imagem como algo além de um símbolo sexual: Bardot era uma presença cinematográfica forte, capaz de tensionar narrativas e provocar desconforto.

Fora das telas, sua imagem se espalhou. Bardot virou referência de moda, comportamento e atitude. Era copiada, fotografada, comentada, julgada. Seu rosto estampava revistas, sua estética influenciava campanhas e seu nome atravessava fronteiras. Ela deixou de ser apenas uma atriz para se tornar um símbolo cultural.
A vida pessoal também nunca ficou separada dessa construção. Bardot viveu relacionamentos públicos, recusou a ideia de discrição como virtude e nunca se mostrou interessada em parecer agradável. Sua forma de existir incomodava justamente porque escapava do controle. Simone de Beauvoir (autora de “O Segundo Sexo”) entendeu isso cedo, ao afirmar que Bardot perturbava porque fazia o que queria, algo ainda mais provocador quando vinha de uma mulher.
Em 1973, quando sua carreira ainda estava no auge, Bardot tomou uma decisão que surpreendeu até seus admiradores: abandonou o cinema definitivamente aos 38 anos. Não foi um afastamento gradual nem um hiato estratégico. Foi uma ruptura. Ela se afastou das telas, da indústria e do próprio mito que havia ajudado a construir.
A partir dali, passou a dedicar sua vida à causa animal. Fundou a Fundação Brigitte Bardot, que se tornaria uma das organizações mais conhecidas internacionalmente no combate à crueldade contra animais. Esse novo papel público reforçou a imagem de alguém radical em suas escolhas, incapaz de viver pela metade. Para muitos, era uma continuação lógica de sua personalidade: se Bardot acreditava em algo, mergulhava por completo.

Mas essa segunda fase da vida pública também revelou um outro lado, menos celebrado e mais difícil de conciliar com o símbolo que ela havia sido.
Ao longo das décadas seguintes, Bardot deixou claro seu afastamento de pautas progressistas. Sempre rejeitou o feminismo e passou a adotar um discurso cada vez mais conservador, que aos poucos se transformou em alinhamento explícito com a extrema direita francesa. Em 1992, casou-se com Bernard d’Ormale (ex-conselheiro da Frente Nacional), partido historicamente associado ao nacionalismo radical e à xenofobia.
Não demorou para que seu posicionamento se tornasse público. Bardot passou a apoiar Jean-Marie Le Pen (líder da Frente Nacional) e, mais tarde, Marine Le Pen (presidente do Reagrupamento Nacional), a quem chamou de “a Joana d’Arc do século 21”. Não se tratava de uma simpatia discreta, mas de um engajamento declarado.
Mais preocupantes do que as alianças políticas foram suas declarações públicas. Entre 1997 e 2008, Bardot foi condenada seis vezes pela Justiça francesa por incitação ao ódio racial. Seus ataques à comunidade muçulmana se tornaram frequentes, descrevendo imigrantes como uma ameaça à identidade nacional da França. O discurso era direto, agressivo e sem tentativa de nuance.
Além disso, Bardot fez comentários considerados homofóbicos e hostis a pautas ligadas aos direitos civis. Sempre que confrontada, reagia com desprezo às críticas, afirmando que estava sendo perseguida por dizer “o que pensa”. Nunca houve recuo, pedido de desculpas ou revisão pública dessas posições.
Esse ponto é central para entender seu legado. As falas de Bardot não foram episódios isolados nem fruto de um momento específico. Elas formaram um padrão, repetido ao longo de anos, mesmo após condenações judiciais. Ao contrário de outras figuras públicas que tentaram contextualizar ou rever discursos passados, Bardot sempre reforçou suas posições.
O contraste com a imagem que a consagrou no cinema é difícil de ignorar. A mulher que ajudou a ampliar os limites do desejo feminino passou a usar sua visibilidade para atacar minorias. A figura que simboliza ruptura virou defensora de estruturas excludentes. A liberdade que ela encarnou nunca se traduziu em compromisso com igualdade ou inclusão.
Esse paradoxo impossibilita qualquer leitura indulgente de sua trajetória. Bardot foi revolucionária em imagem, mas profundamente conservadora em discurso. Foi símbolo de transgressão estética, mas resistência política a mudanças sociais.
Ainda assim, sua influência cultural segue evidente. No Brasil, Bardot deixou uma marca concreta ao passar uma temporada em Armação dos Búzios, em 1964. A presença da atriz projetou internacionalmente o então vilarejo de pescadores, transformando-o em destino turístico conhecido mundialmente. Hoje, a cidade abriga a Orla Bardot e uma estátua em sua homenagem, símbolos de uma passagem que redefiniu o lugar.

Esses monumentos, como a própria memória de Bardot, carregam ambiguidade. Celebram uma figura histórica sem dar conta de todas as camadas que ela acumulou ao longo da vida. São lembranças congeladas de um tempo específico, enquanto o restante da trajetória permanece em disputa.
Brigitte Bardot atravessou o século sem nunca se tornar uma figura confortável. Seu legado exige leitura crítica, contexto e disposição para lidar com contradições. Reconhecer sua importância para o cinema não significa ignorar os danos de seus discursos. E criticar suas posições políticas não apaga o impacto cultural que ela teve.
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