A Tábua de Esmeralda | daquela vez que Jorge Ben Jor misturou sci-fi e samba
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A Tábua de Esmeralda | Daquela vez que Jorge Ben Jor misturou sci-fi e samba

Em 2024, A Tábua de Esmeralda de Jorge Ben Jor completou 50 anos, um marco que celebra não apenas a genialidade musical do cantor e compositor, mas também a profundidade filosófica de sua obra e uma mescla de temas nada óbvios dentro de sua identidade musical, até então, tão demarcada.

Lançado em um período de efervescência histórica e política, o disco reflete o auge da Ditadura Militar no Brasil (1969-1974), um tempo de censura e repressão. Embora não tenha uma crítica explícita ao regime, o álbum, com sua abordagem única, acabou se tornando um dos mais importantes da história da música brasileira.

O campo harmônico

A forma como Jorge Ben – nesse período, ele ainda não tinha adotado o “Jor”- apresenta as músicas de A Tábua de Esmeralda é natural e espontânea, um dos pontos-chave que tornam o disco tão cativante. Com 12 faixas, o trabalho traz uma consistência sonora refinada, fruto da experiência acumulada nos álbuns anteriores do artista. Nesse ponto de sua carreira, esse já era o seu 11º disco de estúdio, e nele ele traz sua maturidade musical não apenas nas composições dentro do campo harmônico, mas também nas letras, que passam a abordar questões mais humanas e filosóficas, algo que não se via de forma tão evidente nos discos anteriores.

O conceito do álbum gira em torno da alquimia, e a capa, que exibe imagens de Nicolas Flamel e Hermes Trismegisto, dois renomados alquimistas, faz referência direta a essa temática. Esse mergulho no misticismo não é mero capricho estético, mas uma chave para entender o que Jorge Ben estava tentando comunicar: uma busca por transformação e evolução. A ideia de transmutação, típica da alquimia medieval, parece transbordar do disco, que mistura o conhecimento esotérico com as questões cotidianas de forma brilhante.

A alquimia de A Tábua de Esmeralda é multifacetada, misturando filosofia, espiritualidade e até mesmo questões de identidade racial. A primeira faixa do álbum, “Os Alquimistas Estão Chegando”, faz uma analogia com a transformação dos metais em ouro, mas também pode ser lida como uma alegoria para o despertar da consciência social, algo muito pertinente em uma época marcada pela repressão e pelo controle da informação.

Em “O Homem da Gravata Florida”, Jorge Ben Jor faz referência a Paracelso, o alquimista e médico suíço, famoso por suas teorias sobre a relação entre química e medicina. Já em “O Namorado Da Viúva”, uma referência a Nicolas Flamel aparece novamente, desta vez com uma conotação irônica, abordando a figura de Flamel e suas várias esposas. O álbum também não deixa de lado temas recorrentes na obra de Jorge Ben, como o amor, as mulheres e o futebol, presentes em faixas como “Menina Mulher da Pele Preta” e “Magnólia”.

Além de sua relação com a alquimia, o álbum também está imerso nas questões raciais que marcaram o Brasil nos anos 60 e 70. Jorge Ben, que se tornaria uma referência para o movimento negro no país, inseriu em suas composições reflexões sobre a identidade e o orgulho negro. Canções como “Zumbi” e “Menina Mulher da Pele Preta” exaltam a negritude e refletem a luta pela afirmação da identidade racial, algo que se entrelaça com as discussões sobre a transformação e a busca por autoconhecimento presentes no álbum.

Porém, a profundidade de A Tábua de Esmeralda vai além de sua conexão com a resistência racial ou política. A alquimia, como conceito filosófico, é central na obra. A palavra “alquimia” tem raízes no antigo Egito e se relaciona com práticas que visavam a transmutação tanto física quanto espiritual. Jorge Ben Jor, ao se apropriar dessa metáfora, pode estar sugerindo que a verdadeira transformação não está apenas no plano material, mas também no desenvolvimento do espírito humano, algo que ele aborda de maneira sutil, mas potente, ao longo do álbum.

A Tábua de Esmeralda | daquela vez que Jorge Ben Jor misturou sci-fi e samba
Arquivo Pessoal/Jorge Ben Jor

Ao pesquisar sobre o significado da alquimia e suas raízes, percebe-se que o conhecimento hermético, como o proposto pela Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto, teve grande influência sobre Jorge Ben. A alquimia, tal como a descrevem estudiosos, é uma busca por compreensão do universo e do ser humano, um processo contínuo de aprimoramento. Esse pensamento parece ressoar nas músicas de Jorge Ben, que, ao mesmo tempo, se apresentam como peças de entretenimento e como portas de entrada para questionamentos mais profundos.

Em uma leitura mais detalhada, A Tábua de Esmeralda revela-se um jogo de códigos e referências. Como se fosse um labirinto hermético, o álbum contém símbolos e mensagens que são apenas compreendidos por aqueles que se atêm aos seus detalhes. O título da faixa “O Homem da Gravata Florida”, por exemplo, é uma referência ao alquimista Paracelso, mas também contém nuances que remetem à transformação e ao processo contínuo de evolução. Assim, a busca por significado se torna parte da experiência de ouvir o disco, que se revela cada vez mais rico à medida que o ouvinte explora suas camadas.

A pesquisa sobre a história da alquimia revela que, muito antes de ser uma prática científica, a alquimia era uma filosofia que tentava conciliar o conhecimento racional com o místico. No Egito, a prática foi associada à busca pela pedra filosofal, um símbolo de transmutação. É possível que Jorge Ben tenha sido influenciado por esses conceitos ao escrever as letras de A Tábua de Esmeralda. O próprio título do álbum faz referência a um dos textos mais importantes da alquimia, escrito por Hermes Trismegisto, que defendia a ideia de que “o que está embaixo é como o que está no alto”, uma filosofia que pode ser aplicada tanto ao plano material quanto ao espiritual.

Não é difícil perceber que a alquimia de Jorge Ben Jor tem também uma forte conexão com as tradições africanas e com a história do povo negro. A palavra “alquimia” tem raízes na língua egípcia, e os egípcios se referiam a alguns de seus processos de conhecimento como “khemeia”, o que pode ser traduzido como “terra negra”. Em um contexto de afirmação da cultura negra, Jorge Ben Jor parecia querer resgatar essas tradições antigas, reconhecendo nelas um sistema de conhecimento profundamente ligado à identidade e ao destino do povo africano no Brasil.

Muitos pesquisadores e críticos, como Kamille Viola e Paulo da Costa e Silva, se dedicam a decifrar os códigos presentes em A Tábua de Esmeralda, considerando que o álbum guarda segredos que ainda precisam ser desvendados. As canções de Jorge Ben Jor são repletas de simbolismos, muitas vezes difíceis de decifrar à primeira vista, mas que revelam um jogo complexo de referências filosóficas, históricas e espirituais. Essas pistas, escondidas nas entrelinhas das letras, tornam o álbum uma obra que pode ser apreciada de múltiplas formas, tanto pela sua beleza sonora quanto pela riqueza de seu conteúdo simbólico.

Um exemplo notável de como Jorge Ben utiliza os códigos herméticos é a música “O Homem da Gravata Florida”, na qual ele faz uso de um melisma que cria uma ligação entre o celestial e o terreno, duas dimensões que se fundem de maneira enigmática. Essa fusão de opostos é um tema central da alquimia, e Jorge Ben Jor, de maneira genial, insere esse conceito dentro de uma canção aparentemente simples, mas carregada de profundidade. O processo alquímico de transmutação está presente não apenas nas palavras, mas também na melodia, nas harmonias e nas nuances do arranjo.

Em “Errare Humanum Est”, Jorge Ben Jor faz referência à teoria dos astronautas de Erich von Däniken, um dos autores que influenciou o pensamento da época. A canção explora a ideia de que o ser humano é um produto de experiências além da Terra, sugerindo que a origem da humanidade pode estar ligada a um conhecimento maior. É mais um exemplo de como Jorge Ben Jor utiliza a alquimia como uma metáfora para compreender o mundo e o espírito humano, transitando entre o místico, o científico e o filosófico.

Por fim, A Tábua de Esmeralda é uma obra complexa que, 50 anos após seu lançamento, continua a instigar e a inspirar. A genialidade de Jorge Ben Jor não reside apenas na sua habilidade de criar músicas envolventes, mas também na maneira como ele entrelaça filosofia, história, e espiritualidade em suas canções que soam populares, longe de um pedantismo que alguns artistas – sobretudo, de rock progressivo – constroem ao criar uma narrativa diante de temas tão ricos.

A alquimia, com sua busca pela transformação e evolução, é o fio condutor que une todo o álbum, convidando o ouvinte a se aventurar por um universo de mistérios, códigos e significados profundos. A obra continua sendo uma das mais importantes da música brasileira, não apenas pela sua sonoridade, mas pela profundidade de seu conteúdo de um violão inconfundível.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.