A nomeação de Carlo Ancelotti como técnico da seleção brasileira trouxe à tona não apenas seu impressionante currículo futebolístico – cinco Champions Leagues, títulos nacionais nas cinco grandes ligas europeias –, mas também uma faceta pouco conhecida do italiano: sua carreira paralela no mundo do entretenimento, que inclui desde participações em blockbusters até um papel involuntário na reconciliação de dois mestres do cinema.
Em 2016, durante as filmagens de “Star Trek: Beyond” em Vancouver, Ancelotti fez uma aparição relâmpago como um cientista da nave Enterprise. A cena, que dura meros segundos, surgiu de forma improvisada. O técnico visitava o set a convite da família de Zoë Saldaña, a atriz que interpreta Uhura na franquia. O diretor Justin Lin, sabendo da presença do treinador, decidiu incluí-lo no filme. “Eu interpreto um cientista que examina um alienígena. Foi divertido – imaginei que era o Cristiano Ronaldo na minha frente”, brincou Ancelotti em entrevista à Four Four Two.

Mas essa não foi sua primeira incursão cinematográfica. Quase trinta anos antes, em 1984, ainda como jogador da Roma, ele participou de duas produções italianas. Na comédia esportiva “L’allenatore Nel Pallone”, estrelada por Lino Banfi, Ancelotti interpretou a si mesmo em uma rápida aparição. No mesmo ano, integrou o elenco de “Don Camillo”, adaptação moderna da obra clássica, onde atuou como jogador do time Devils em uma cena de partida de futebol. O mais interessante é do técnico ter dividido tela com Terence Hill. Assista:
O episódio mais fascinante de sua relação com o cinema, aconteceu longe das câmeras profissionais. Em março de 1975, os cineastas Pier Paolo Pasolini e Bernardo Bertolucci, então em um tenso afastamento artístico, reencontraram-se em um campo de futebol em Parma. Pasolini filmava “Salò, ou Os 120 Dias de Sodoma” (1975), sua obra mais controversa, enquanto Bertolucci trabalhava no épico “Novecento”. Para apaziguar os ânimos, as equipes organizaram um jogo entre os dois grupos.
Ancelotti, então um promissor jogador nas categorias de base do Parma, foi convocado às pressas para reforçar o time de Bertolucci – o diretor, menos interessado em futebol que Pasolini, teve dificuldades para completar seu time. O jogo, imortalizado no documentário “Bertolucci 5 – Pasolini 2”, terminou com vitória do lado de Novecento por 5 a 2. Uma foto histórica registrada por Deborah Beer, da equipe de Salò, mostra o jovem Ancelotti com a camisa do filme de Bertolucci, roxa, à direita.

O técnico só confirmou sua participação em 2021, quando a Gazzetta dello Sport lhe apresentou a imagem. “Se fosse hoje, com diretores tão famosos, teríamos transmissão ao vivo”, comentou, revelando ter marcado um gol na partida. Ele também lembrou que Pasolini, conhecido por sua paixão futebolística, sofreu uma falta forte e terminou o jogo mancando. A reconciliação dos cineastas, infelizmente, foi breve: Pasolini foi brutalmente assassinado em novembro daquele mesmo ano, em um crime que permanece envolto em mistérios.
A relação de Ancelotti com Star Trek vai além de uma simples participação. Em entrevista à Sky Sports, ele admitiu ser fã da série original desde criança. “Sou um péssimo ator, mas estar naquele universo foi maravilhoso”, confessou. O vínculo com a produção surgiu através de sua amizade com Marco Perego, marido de Zoë Saldaña, que o convidou para visitar os sets durante as filmagens.

Enquanto se prepara para assumir a seleção brasileira no final de maio, Ancelotti mantém o foco no Real Madrid, onde busca seu quinto título da Champions League como técnico. Mas sua trajetória alternativa revela um homem de interesses diversos – e algumas histórias dignas de roteiro.
O contexto por trás da pelada entre Pasolini e Bertolucci é particularmente revelador. Os dois haviam rompido relações após Bertolucci lançar “Último Tango em Paris” (1972), filme que chocou o mundo pela cena em que Marlon Brando usa manteiga durante um ato sexual com Maria Schneider. Em entrevista à Cinemateca Francesa em 2013, Bertolucci admitiu que a atriz não foi avisada sobre a cena, que não constava no roteiro original. “Queria sua reação genuína de humilhação”, justificou, acrescentando sentir culpa, mas não arrependimento.
Pasolini, que havia sido mentor de Bertolucci nos anos 1960, criticou publicamente o filme, acusando-o de “exploração”. A reconciliação só foi possível graças à intervenção da atriz Laura Betti, que trabalhava em ambos os filmes. O jogo de futebol, portanto, foi mais que uma partida amistosa – foi um símbolo de reconciliação artística, ainda que efêmera.
Curiosamente, Ancelotti quase não participou do evento. Na época, ele treinava nas categorias de base do Parma e foi convocado de última hora para completar o time de Bertolucci. Em depoimento à Gazzetta, ele descreveu o clima como “profissional, mas com um toque de improviso típico do cinema”. Pasolini, conhecido por seus ensaios sobre futebol – foi ele quem cunhou os termos “futebol de prosa” (europeu) e “futebol de poesia” (sul-americano) –, levou o jogo a sério, enquanto Bertolucci assumiu um papel mais discreto.
A trajetória de Ancelotti como “ator” não se limita ao cinema. Em 2020, durante a pandemia, ele estrelou uma série de vídeos humorísticos para o canal do Real Madrid, onde encenava situações cotidianas no estilo de filmes mudos. O sucesso foi tanto que rendeu convites para programas de TV na Itália e na Espanha.
Enquanto o mundo do futebol se concentra em seu desafio à frente da seleção brasileira, essas histórias paralelas revelam um Ancelotti multifacetado: estrategista meticuloso nos gramados, mas também um personagem disposto a entrar em cenas improváveis – literal e figurativamente. Seu passado sugere que, sob seu comando, a seleção não apenas jogará futebol de alto nível, mas talvez acumule também histórias tão ricas quanto as de sua própria biografia.
Com uma carreira que mistura glórias esportivas, aparições inusitadas e até um papel não creditado na história do cinema italiano, Ancelotti chega ao Brasil como muito mais que um técnico – e seu desafio será tão complexo quanto fascinante: unir a “poesia” do futebol brasileiro com a “prosa” de sua experiência europeia, numa síntese que talvez só um homem de trajetória tão singular poderia conceber.
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