Candyman | Tony Todd mostrou que o racismo é mais assustador que assassinos em série
TriStar Pictures/Reprodução

Candyman | Tony Todd mostrou que o racismo é mais assustador que assassinos em série

“Eu sou o rumor. É uma condição abençoada, acredite em mim. Ser sussurrado nas esquinas. Viver nos sonhos das outras pessoas, mas não ter que ser.” — Candyman.

Lançado em 1992, num momento em que o subgênero slasher de terror começava a perder popularidade e entrava em uma nova fase de revisão, O Mistério de Candyman, de Bernard Rose, foi um filme que levou a sério sua identidade de slasher. O vilão principal, Candyman — interpretado brilhantemente por Tony Todd — , embora tenha sido retratado com um icônico casaco de pele, não era um prisioneiro insano, um maníaco excêntrico ou um tolo assassino, mas, na verdade, uma vítima da opressão de sua própria sociedade.

A vida imita a arte

Embora seja considerado hoje, mais de 30 anos desde seu lançamento, um clássico cult, Candyman, assim como a própria lenda que o cerca, foi, em muitos aspectos, esquecido ou marginalizado dentro do próprio subgênero do slasher, especialmente quando comparado a ícones como Jason Voorhees, Michael Myers e Freddy Krueger, que dominam a cultura pop desde os anos 80.

Enquanto esses vilões se tornaram figuras onipresentes, com sequências intermináveis e uma presença constante em filmes e merchandising, Candyman nunca alcançou o mesmo nível de popularidade, apesar de sua complexidade e do impacto cultural profundo que seu personagem representa.

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Isso pode ser atribuído, em parte, à natureza mais sombria e séria de sua história, que aborda questões de racismo e injustiça social, contrastando com os vilões slasher tradicionais, cuja violência, embora brutal, muitas vezes não envolve um comentário social tão direto.

Candyman, com seu simbolismo pesado e seu enredo enraizado nas realidades dolorosas das comunidades marginalizadas, permanece um personagem mais nichado e, paradoxalmente, mais relevante, especialmente em tempos contemporâneos, mas sua ausência do “hall da fama” do slasher reflete, de certa forma, como figuras que desafiam a narrativa dominante muitas vezes são relegadas à periferia, mesmo dentro de um gênero que é, em muitos casos, alimentado por essa mesma marginalização.

As origens de Candyman

A lenda de Candyman tem suas raízes na história de um homem chamado Daniel Robitaille, um talentoso pintor negro do século XIX. Robitaille era filho de escravos e, em sua juventude, foi contratado por uma rica mulher branca para pintar um retrato dela. Durante o relacionamento, ela engravidou dele, o que enfureceu o pai da jovem. O pai matou Robitaille, cortando suas mãos e cobriu seu corpo com mel, deixando-o ser picado até a morte por abelhas.

Adaptado do romance “The Forbidden”, de Clive Barker, o filme de Rose muda o cenário original de Liverpool para Chicago, especificamente para o bairro de Cabrini-Green, uma comunidade marginalizada e predominantemente negra. Aqui, Candyman se torna mais do que apenas uma história de terror sobre um monstro sobrenatural; ele se torna uma alegoria sobre a marginalização social e a invisibilidade de comunidades inteiras, que, como Candyman, são excluídas da narrativa dominante até que suas histórias sejam finalmente “vocalizadas” por uma mulher branca. O filme explora como essas vozes são, muitas vezes, as únicas que têm a capacidade de ser ouvidas — e como essas vozes frequentemente falham em captar a verdadeira dor e experiências dessas comunidades.

A figura de Candyman, portanto, não é apenas o fantasma de um homem injustiçado, mas um símbolo de um sistema que silencia os marginalizados até que uma “testemunha privilegiada” se faça presente. Helen Lyle (Virginia Madsen), a protagonista, é uma mulher branca que se envolve com a lenda e, ao fazer isso, traz à tona o passado doloroso de Candyman e a violência histórica que ele representa.

Embora ela seja a pessoa que começa a desenterrar a verdade, sua descoberta não é por altruísmo, mas por curiosidade intelectual, um reflexo de como as narrativas de dor das comunidades marginalizadas só ganham peso quando são validadas por figuras que se encaixam no molde da sociedade dominante.

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A mudança de foco para a cidade de Chicago e sua comunidade empobrecida foi uma escolha simbólica de Rose, já que Cabrini-Green foi um dos bairros mais estigmatizados e negligenciados pela política urbana da época. A lenda do Candyman, com suas raízes em uma história de racismo brutal, reflete como essas áreas se tornaram invisíveis aos olhos da sociedade branca e como, mesmo quando suas histórias são trazidas à tona, elas são frequentemente distorcidas e descartadas. Candyman, como vítima de racismo, é apagado pela história até ser reencarnado como um monstro vingativo, enquanto o lugar que ele representa — um bairro negro e empobrecido — continua a ser ignorado até que alguém de fora venha “olhar” e “contar” a história.

Grafite, racismo e marginalização

Os grafites desempenham um papel crucial como alegoria da luta entre memória, identidade e marginalização. Eles servem como símbolos da resistência e da expressão de uma comunidade frequentemente ignorada e oprimida. Através das imagens pintadas nas paredes, o filme explora como as histórias e mitos urbanos se transmitem nas periferias, como o próprio mito de Candyman, figura mítica ligada à violência racial e social.

Os grafites são, assim, não apenas formas de arte, mas também formas de resistência e uma maneira de perpetuar a memória de injustiças passadas, funcionando como uma linha tênue entre o passado sombrio e o presente perturbador da comunidade que, ao contar suas histórias, ressignifica sua própria realidade.

Helen Lyle, ao se apropriar da lenda de Candyman para sua pesquisa, acaba, sem querer, reforçando essa dinâmica, em que a dor de uma comunidade só é ouvida através do olhar de uma mulher branca que a “descobre” e a expõe ao público.

O filme, assim, denuncia como a violência contra as minorias e os marginalizados — especialmente os negros — é muitas vezes tratada como um espetáculo, uma história assustadora, que ganha protagonismo apenas quando sua narrativa é filtrada pela mídia ou pelo conhecimento acadêmico mainstream, frequentemente encarnado por uma figura como a de Helen, a mulher branca curiosa e heroica. É um reflexo de como o sofrimento das comunidades negras não tem o mesmo peso até que seja “legitimado” por alguém com o poder de dar visibilidade ao que foi sempre invisibilizado.

Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, Helen sai da boca de um dos grafites, simbolizando a transição entre a realidade e o mito, e da imersão de Helen no próprio terror urbano que ela inicialmente tentou desmistificar. O grafite, que retrata a figura de Candyman, funciona como um portal simbólico para o mundo do sobrenatural e da violência racial, ligando a personagem à história e ao poder do mito.

Candyman | Tony Todd mostrou que o racismo é mais assustador que assassinos em série
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Ao sair de dentro do desenho, Helen não apenas se conecta fisicamente ao passado sombrio da comunidade, mas também se torna uma parte ativa da lenda, sugerindo que o medo e a opressão associados ao mito de Candyman são inseparáveis da identidade e memória coletiva da área urbana. A cena enfatiza como os grafites, como expressão artística e política, atuam como veículos de resistência e como canais por meio dos quais as narrativas de marginalização e violência ganham força e continuidade.

Tony Todd interpreta um vilão criado pelo racismo

Ao mesmo tempo, a simbologia de Candyman, como um monstro que mata aqueles que se atrevem a invocar seu nome, pode ser vista como uma metáfora para as consequências de se enfrentar uma sociedade que historicamente tem reprimido a cultura negra. O próprio fato de que Candyman só pode ser invocado por pronunciar seu nome cinco vezes no espelho aponta para a ideia de como as histórias da população negra, suas lutas e seu sofrimento, só se tornam reconhecíveis quando são refletidos na forma de um “espelho” — ou seja, quando alguém de fora os repassa ou os “reconhece” de acordo com um código social pré-estabelecido. A necessidade de olhar para o espelho e dizer o nome de Candyman se torna um ritual de reconhecimento, um ato de “ver” e de ser visto — e, no caso de Helen, também de ser “ouvindo” — as vozes que clamam por justiça.

Candyman | Tony Todd mostrou que o racismo é mais assustador que assassinos em série
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Se o medo de Candyman está na sua monstruosidade, na brutalidade de sua vingança, ele também está na desconfortante verdade de que os indivíduos e as comunidades marginalizadas só podem ser vistos e ouvidos quando alguém do lado da “sociedade legítima” decide dar visibilidade a essas histórias. A figura de Candyman, portanto, não é apenas o reflexo do medo de um homem negro vingativo, mas um reflexo do medo do que acontece quando uma voz, antes ignorada, é finalmente ouvida, quando a “verdade” por trás de um sistema de opressão é exposta.

E é exatamente isso que O Mistério de Candyman faz: expõe a verdade por trás das lendas urbanas e das figuras de pesadelo, revelando a verdadeira monstruosidade que alimenta o medo — um medo alimentado pela ignorância, pelo racismo e pela marginalização. O filme de Bernard Rose se antecipa ao explorar essa dinâmica e abre caminho para que versões posteriores, como o remake de Nia DaCosta e Jordan Peele em “Corra!”, amplifiquem ainda mais essas questões. Candyman, tanto o original quanto sua nova versão, não é apenas um filme de terror.

É uma alegoria que expõe como a violência e o racismo, por muito tempo, foram tratados como histórias distorcidas e monstruosas, só para serem finalmente “legitimados” e ouvidos quando uma figura branca — de dentro ou de fora da comunidade — se atreve a olhar para o espelho e reconhecer a dor e a verdade do outro.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.