François Ozon não é um diretor fácil de categorizar. Sua filmografia é um caleidoscópio de gêneros e abordagens, do thriller psicosexual ao musical camp, unidos por uma curiosidade sem julgamento sobre comportamentos que transgridem as normas sociais. Ao se aventurar pela primeira vez em uma adaptação literária de peso, trazendo para as telas O Estrangeiro, de Albert Camus, Ozon não busca subverter a obra-prima do absurdo, mas sim dar-lhe corpo, calor e um contexto político mais explícito. Resultando num filme que, como um bom vinho tinto, é seco, complexo e deixa um gosto persistente – mesmo que, para alguns, possa parecer excessivamente contemplativo.
Assim como no livro de Camus, O Estrangeiro acontece na Argélia dos anos 1930 sob domínio colonial francês, Meursault (Benjamin Voisin) é um jovem funcionário cuja apatia diante da vida choca aqueles ao seu redor. Após o falecimento de sua mãe, ele realiza o enterro com uma frieza que será usada contra ele mais tarde em um crime que acaba cometendo.
A primeira grande decisão – e acerto – técnico de Ozon e de seu diretor de fotografia, Manuel Dacosse, foi filmar em preto e branco. Essa escolha vai muito além do mero capricho estético ou da criação de uma “atmosfera melancólica”. Ela opera em vários níveis. Primeiro, constrói uma Algéria dos anos 1930 que é ao mesmo tempo, histórica e atemporal, um espaço de sonho febril onde o sol não é vida, mas uma agressão física, uma lâmina que corta as sombras. Segundo, e mais crucial, o preto e branco traduz visualmente a percepção de mundo de Meursault, o protagonista.

É como se a vida, para ele, já fosse desprovida das cores vibrantes das emoções que a sociedade espera. Os tons de cinza, os contrastes marcados e a luz que frequentemente incide sobre seu rosto como um interrogatório refletem sua existência pragmática e desencantada. A beleza das imagens, é verdade, é deslumbrante e quase fetichista – dos rostos esculturalmente iluminados aos cenários da cidade –, mas é uma beleza fria, observada à distância, nunca sentida.
É nesse mundo que Meursault, se move com uma economia de gestos que é ao mesmo tempo, fascinante e perturbadora. A interpretação de Voisin é um estudo minucioso da desconexão. Ele não “atua” a apatia, mas a incorpora. Seus movimentos são medidos, sua voz raramente se altera, e seus olhos, embora fixos, parecem sintonizados com uma frequência interna inacessível. O ator consegue fazer de um homem que repetidamente diz “não sei” uma figura magnética. Seus rituais – o ato de fumar com uma concentração quase religiosa, o barbeamento cuidadoso – são as únicas âncoras em uma realidade que ele navega por inércia. Quando ele descansa a cabeça no corpo de Marie (Rebecca Marder) após um mergulho, temos o clímax da sensualidade ozoniana, mas também a confirmação de que, para Meursault, mesmo o prazer é um fenômeno físico, desconectado de qualquer narrativa romântica maior.

Ozon é hábil em usar a gramática cinematográfica para nos colocar dentro dessa cabeça estrangeira. A montagem, por vezes, possui um caráter abrupto, com cortes que mais sugerem associação de ideias do que continuidade narrativa fluida, harmonizando-se com a desarmonia interior do personagem. Os planos são frequentemente longos, permitindo que a estranheza de suas reações – ou a falta delas – respire e incomode o espectador. A câmera de Dacosse o observa com a paciência de um entomologista, criando enquadramentos impecáveis que isolam Meursault mesmo em meio à multidão, como durante o julgamento, onde ele parece um espécime sob vidro.

É no julgamento, aliás, que Ozon faz sua intervenção mais significativa no texto de Camus e onde o filme ganha uma camada política crucial. O livro, narrado em primeira pessoa, mantém o foco na condenação de Meursault por sua incapacidade de performar o luto socialmente aceitável. Ozon amplia o quadro. Ele estabelece sutilmente, desde os grafites pró-liberação argelina, o caldo colonial violento e racista em que a história se desenrola.
No tribunal, a acusação se dedica mais a crucificar o “frio assassino de mães” do que o homem que matou um árabe. A defesa chega a afirmar que, em outras circunstâncias, o crime contra um nativo seria quase irrelevante para a lei colonial. Meursault é duplamente estrangeiro: por sua psicologia e por ocupar, como francês, um lugar de privilégio opressor que ele nem sequer compreende ou questiona. O “absurdo” deixa de ser apenas metafísico e se torna histórico e judicial. Ozon não didatiza, mas a mensagem é clara: a sociedade que condena Meursault por sua falta de emoção é a mesma que normaliza a violência contra um povo.
No entanto, o filme enfrenta seus desafios. A fidelidade quase literal ao diálogo do livro, embora respeitosa, pode soar, em momentos, como uma camisa-de-força, especialmente na sequência do assassinato na praia. A justificativa do “sol” parece, visualmente, um tanto literal e até caricata em seu exagero, perdendo um pouco da força simbólica que tem na prosa. A inversão cronológica inicial, que mostra Meursault já na prisão, busca gerar suspense, mas em uma história tão conhecida, o recurso soa mais como uma formalidade do que uma reinvenção necessária.
O ápice filosófico e dramático vem no terceiro ato, com a visita do capelão (Swann Arlaud). Nesta cela escura, os opostos se digladiam: a fé contra o ateísmo, o sentido contra o vazio, a performance social contra a honestidade brutal. É quando Meursault, finalmente, explode em um monólogo de revolta contra a condição absurda da existência. Voisin brilha aqui, e Ozon encontra a síntese entre Camus e seu próprio cinema: a revolta apaixonada como única resposta à indiferença do universo. Meursault aceita o absurdo, abraça sua condição de estranho e, nesse ato, encontra uma estranha e trágica liberdade.
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