Crítica | A Garota da Vez lembra do espetáculo de horror que se tornaram os true crimes
Netflix/Divulgação

Crítica | A Garota da Vez se afasta do espetáculo de horror que se tornaram os true crimes

Anna Kendrick é uma dessas atrizes que está no imaginário popular por fazer “filmes para meninas”, com muitas comédias românticas e até mesmo na franquia “Crepúsculo”, sua estreia na direção com A Garota da Vez, para além de uma história poderosa, parece ser uma resposta de uma atriz que diariamente tem que lidar com a misoginia de uma indústria que descarta mulheres, como se fosse um jogo de entretenimento para a televisão.

A Garota da Vez é uma representação da infame e chocante história real do assassino em série Rodney Alcala e sua aparição no programa “The Dating Game” em 1978. Kendrick usa essa história como pano de fundo para explorar as lutas duradouras enfrentadas pelas mulheres, como não serem acreditadas ou colocarem-se em situações desconfortáveis para poupar os sentimentos dos outros. Esses problemas eram tão presentes nos anos 1978 quanto são hoje… seja no trabalho, com amigos e família ou, bem, esperamos que não na presença de um assassino em série.

A Garota da Vez

Crítica | A Garota da Vez lembra do espetáculo de horror que se tornaram os true crimes
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A Garota da Vez é Cheryl Bradshaw (interpretada por Kendrick), uma atriz em início de carreira, que passa por dificuldades em busca de seu grande momento. Cheryl está lutando para passar da fase de audições e fica empolgada ao saber que conseguiu um lugar no popular programa de TV: The Dating Game. Ela nem precisou fazer um teste! Sally Field participou do programa, então por que não poderia ser uma oportunidade para ela também?

A má notícia é que, sem que Cheryl saiba, um de seus três pretendentes escondidos é o assassino em série Rodney Alcala. Ele, por acaso, tirou um tempo de sua ocupada agenda de matar mulheres para aparecer em rede nacional para tentar encantar a América. Através de uma série de flashbacks, durante a preparação para a aparição de Cheryl no programa, temos um vislumbre da vida de Alcala como fotógrafo, além de obtermos uma visão das mulheres que ele assassinou. Agora a pergunta é… Cheryl o escolherá como seu encontro final e, se sim, será ela sua próxima vítima?

Estreante com muito potencial

Nem todo ator-cineasta é um Jordan Peele ou um Clint Eastwood, e só porque alguém passa muito tempo no set observando o diretor e a equipe fazendo seu trabalho, não significa que tenha uma visão criativa. No entanto, assim como Zoë Kravitz em “Pisque Duas Vezes”, Anna Kendrick mostrou suas credenciais num thriller que, embora seja longe de ser uma obra-prima, mostra muito potencial dela como diretora.

Kendrick faz um trabalho seguro na cinematografia, sem muitas decisões ousadas, mas o seu domínio do clima e da técnica está presente desde o início, assim como sua clareza sobre o tipo de diretora que quer ser. Ela não se detém nos detalhes sangrentos; há alguns closes rápidos, mas o ataque é visto principalmente em planos gerais ou ouvido fora de cena. Isso, de certa forma, está, felizmente, desalinhado com a perspectiva no true crime recente, em que mortes se tornam entretimento para as massas e assassinos seriais vão ganhando um charme que víamos em vilões ficcionais. A cineasta mostra como o monstro conquista suas vítimas, mas ela está muito mais interessada em focar nas vítimas e na rede invisível que as liga. Ironicamente, mesmo o centro da história se passando num programa de namoro na TV, em momento algum ela está romantizando o agressor.

O candidato 3

Rodney James Alcala (interpretado por Daniel Zovatto), o fotógrafo, estuprador e assassino é conhecido no universo do true crime como o “Assassino do The Dating Game”, por sua participação como um dos pretendentes no jogo de namoro exibido em 1978, bem no auge de sua onda de assassinatos.

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Zovatto oferece uma performance assustadora, com uma presença inquietante que lembra um jovem Vincent D’Onofrio. Ele é excelente, misturando uma certa estranheza e um charme incompreensível, mas evita com inteligência os trejeitos exagerados e a atuação excessiva que papéis como esse podem inspirar. Ele transmite a arrogancia de um homem que sabe que não será facilmente pego. Mas aqui dou outro mérito ao trabalho de Kendrick que, a todo momento que ele parece ser muito gente boa, há quase em seguida uma cena que contrapõe essa máscara social do assassino.

Várias histórias e um mesmo fim

Infelizmente, o roteiro e montagem tornam o que parecia ser simples em algo mais confuso do que deveria ser – principalmente se você não conhecia a história real por trás do filme. O roteiro de Ian MacAllister McDonald introduz um formato de narrativa estranho, no qual o filme se desvia da história de Sheryl para contar pequenas vinhetas sobre outras vítimas de Alcala. Essas vinhetas, em sua maioria, não se sobrepõem e variam em duração, local e período de tempo, com o filme saltando para frente e para trás na linha do tempo de uma forma que quebra o ritmo e distrai da história principal. A mensagem de A Garota da Vez, sobre como as autoridades frequentemente ignoram as denúncias das mulheres, é eficaz, mas a narrativa não dá a gravidade necessária ao tema.

Ainda assim, a estreia de Kendrick como diretora mostra tanto confiança quanto grande potencial, construindo uma história perturbadora e um exame assustador da misoginia casual e da violência contra as mulheres.

Com a ajuda do diretor de fotografia de Zach Kuperstein, o filme possui uma linguagem visual clara e bem planejada. Há uma sequência fantástica ao estilo Hitchcock, ambientada em um estacionamento vazio, onde Alcala persegue sua vítima andando lentamente. Grande parte do filme é filmada em close-ups, centralizando a câmera nas mulheres e isolando tanto elas quanto o público do mundo exterior, destacando a sensação de isolamento que os personagens experimentam em seus momentos de vulnerabilidade.

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A Garota da Vez é uma estreia arrepiante na direção de Anna Kendrick, misturada com um movimento tonal notável de uma história fascinante. O filme é um conto sombrio de sobrevivência e força, estrelado por um vilão cruel e egoico. Superficialmente, é um banquete da cultura pop para aqueles interessados ​​na mistura nada saudável de entretenimento televisivo e true crime. Em sua alma, é um filme sobre como enfrentar os homens que ousaram silenciar as mulheres quando elas estavam mais vulneráveis.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.