Imagine um mundo onde as palavras são supérfluas, onde a comunicação se dá por meio de olhares, texturas e sons que ecoam como canções ancestrais. Um lugar onde criaturas misteriosas, com peles que brilham sob a luz da lua, escondem-se nas sombras das florestas, e onde uma menina, tão perdida quanto corajosa, descobre que os monstros de seu povo talvez sejam apenas espelhos de seus próprios medos. A Lenda de Ochi, dirigido por Isaiah Saxon e distribuído pela A24, é esse mundo – um filme que se propõe a ser mais uma experiência sensorial do que uma narrativa tradicional. E, como toda experiência, ele deixa marcas, algumas luminosas, outras pouco mais que sombras passageiras.
A Lenda de Ochi é, no fundo, uma história sobre a solidão e a busca por pertencimento. Mas antes, é preciso mergulhar no que este filme faz de excepcional – e no que deixa escorrer entre os dedos como areia de um relógio antigo.
A primeira coisa que salta aos olhos – e que fica gravada na memória – é o visual meticulosamente artesanal do longai. Saxon, vindo do universo dos videoclipes (seus trabalhos com Björk é uma referência clara), constrói uma estética que parece saída de um livro ilustrado do século passado, onde cada folha, cada criatura, cada rosto foi pintado com pincéis de nostalgia e melancolia.

Os Ochi, seres que lembram uma fusão entre um macaco dourado e um duende saído de um conto dos Irmãos Grimm, são criaturas de fantoche tradicional, com movimentos que oscilam entre o delicado e o estranhamente humano. Seus olhos, grandes e líquidos, parecem guardar segredos milenares, e a maneira como se comunicam – através de uma técnica vocal chamada hocketing, em que uma melodia é dividida entre sons distintos – é uma das invenções mais originais do filme. Não é à toa que o bebê Ochi, encontrado ferido pela protagonista Yuri (Helena Zengel), rouba a cena sempre que aparece. Sua relação com a garota é construída não através de diálogos, mas de gestos: um toque, um olhar, um som que ecoa como uma pergunta não dita.
Os cenários, por sua vez, são personagens por si. A ilha de Carpathia parece existir em um tempo suspenso, entre o início do século XX e um passado mítico. Os alpes enevoados com uma paleta de cores que mescla o terroso e o surreal – tons de verde musgo, azuis profundos e dourados desbotados. Há uma sequência dentro de uma caverna, onde estalactites brilham como cristais sob uma luz invisível, que poderia ser um quadro vivo de Zdzisław Beksiński. E, no entanto, tudo parece real, não no sentido fotográfico, mas no sentido de que alguém, em algum lugar, poderia jurar que já esteve ali em um sonho.

Mas eis o paradoxo: um filme que se comunica tão bem através de imagens e sons acaba tropeçando justamente no que deveria sustentá-lo – a história. A Lenda de Ochi tem uma premissa simples, quase clássica: uma criança que descobre que o “inimigo” talvez não seja tão monstruoso assim. É um tema que funcionou em “E.T.” ou “O Labirinto do Fauno”. Aqui, porém, falta peso emocional.
Yuri é uma protagonista silenciosa, no sentido literal e metafórico. Zengel entrega uma performance física convincente – seus olhares, sua postura rígida, a maneira como segura o Ochi como se fosse um segredo –, mas o roteiro não a aprofunda. Sabemos que ela se sente deslocada, que seu pai, Maxim (Willem Dafoe), é um homem amargurado que culpa os Ochi pela perda de sua esposa, e que há toda uma vila de crianças-soldado (sim, lideradas por Dafoe em uma armadura da Primeira Guerra) prontas para caçar as criaturas. Mas tudo isso é dito, nunca verdadeiramente sentido.
Dafoe, é claro, é magnético. Seu Maxim é uma figura tragicômica, lembrando um pouco o capitão Ahab (de “Moby Dick”) com armadura enferrujada, cujos discursos sobre “lembrar cada palavra como se fosse a última gota do leite de sua mãe” são ao mesmo tempo hilários e perturbadores. Mas mesmo ele não escapa da superficialidade do roteiro. Seu ódio pelos Ochi nunca é explorado além do óbvio, e sua relação com Yuri, que deveria ser o cerne dramático, é reduzida a cenas de confronto que mais parecem esboços de algo maior.
A trilha sonora de David Longstreth é outro ponto alto. Há um tema principal, uma melodia que lembra canções folclóricas eslavas, que volta e meia surge como um fio condutor da narrativa. Em certos momentos, ela se mistura aos sons ambientes – o farfalhar das folhas, o canto distante de um pássaro – criando uma imersão quase tátil. A escolha de usar hocketing para a linguagem dos Ochi também é brilhante, pois transforma suas vocalizações em algo orgânico, quase musical.
Mas, novamente, há uma desconexão. Em um filme onde tanto se fala através de sons, a ausência de uma trilha emocional mais contundente é sentida. Há cenas que poderiam ser arrebatadoras – como o momento em que Yuri finalmente entende a linguagem dos Ochi – mas que, sem uma música que as eleve, ficam apenas… bonitas.
Curiosamente, quando o trailer de A Lenda de Ochi foi lançado, houve quem jurasse que suas imagens eram produto de Inteligência Artificial. Nada poderia ser mais distante da verdade. Cada quadro deste filme respira artesanalidade, desde as expressões minuciosas dos Ochi até as pinceladas visíveis nos cenários. Essa polêmica, no entanto, é sintomática: em uma era onde o digital domina, um filme que celebra o feito à mão pode parecer, para alguns, artificial. E talvez essa seja a maior ironia de A Lenda de Ochi: ele é tão dedicado a criar um mundo único que, por vezes, esquece de convidar o espectador a habitá-lo.

No início, falei que A Lenda de Ochi é, no fundo, uma história sobre solidão. Yuri é uma garota que não se encaixa – nem na família disfuncional que tem, nem no mundo que lhe dizem para temer. Seu encontro com o Ochi bebê é o primeiro momento em que ela se sente vista. E, no final, quando ela parte sozinha, deixando para trás tanto o pai quanto a criatura que salvou, há uma sensação de ciclo fechado – mas também de vazio.
É esse vazio que fica. A Lenda de Ochi é um filme que encanta os olhos, que prova o talento de Saxon como criador de mundos, mas que, como a própria Yuri, parece não saber ao certo para onde ir depois da jornada. Talvez, no futuro, Saxon encontre o equilíbrio entre forma e emoção. Por enquanto, ficamos com a beleza de um conto que, como os Ochi, comunica-se mais através de sensações do que de palavras – e, assim como eles, deixa a gente querendo ouvir mais.
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