É difícil não começar esta crítica pelo sentimento mais simples: a compaixão diante de um participante que sucumbe cedo demais – uma reação humana que atravessa o filme e serve como fio condutor para a experiência do espectador. A partir desse ponto, A Longa Marcha: Caminhe ou Morra tenta construir uma fábula política e física, mas frequentemente se perde entre escolhas de adaptação, decisões estéticas e uma direção que prefere a contundência do choque ao exame paciente da natureza humana. O texto original de Stephen King impunha camadas de ambiguidade e interioridade; aqui, sob o comando de Francis Lawrence, e com a interpretação comprometida de David Jonsson, a história chega à tela com decisões que achatam complexidade em prol da clareza imediata – nem sempre para o benefício do filme.
O enredo, simples em estrutura, mas carregado de simbolismo, apresenta um grupo de 100 adolescentes que participam de uma competição mortal: caminhar sem parar, sob regras rígidas, até restar apenas um vencedor. O prêmio? Sobrevivência e um desejo realizado. O problema é que, no filme, essa premissa não ganha densidade, nem se sustenta dramaticamente como deveria. O que caminhava para ser uma metáfora sobre autoritarismo, espetáculo da violência e a manipulação da juventude por sistemas opressores, se torna um desfile de cenas desconexas, sem aprofundamento temático nem impacto emocional duradouro.
A direção de Lawrence contribui para essa superficialidade. Há uma evidente apatia na forma como ele conduz as cenas, como se sua câmera estivesse apenas seguindo uma lista de momentos-chave, sem nenhuma intenção de explorar as camadas que a história oferece. A ausência de um olhar mais apurado sobre os personagens e suas transformações faz com que o público se distancie rapidamente da experiência. A montagem, por sua vez, parece muito mais preocupada em manter a narrativa em movimento literal do que em dar ritmo à tensão que a história naturalmente carrega. O filme avança sem pausas significativas, sem espaços para o espectador respirar ou refletir – e isso, paradoxalmente, esvazia o drama.
Visualmente, A Longa Marcha: Caminhe ou Morra também decepciona. A fotografia digital, lavada e sem personalidade, remete a uma estética genérica, mais próxima de uma série adolescente de baixo orçamento do que de um longa com ambições distópicas – ironicamente, o que marcou muitas obras que bebiam da fonte de “Jogos Vorazes”, no qual Lawrence dirigiu todos os filmes da série, com excessão ao primeiro. Falta textura, contraste e, sobretudo, intenção visual. Em uma história sobre esgotamento físico e psicológico, o visual deveria transmitir desconforto, calor, cansaço, dor. Mas tudo parece limpo demais, artificial demais. Até mesmo as cenas de violência – que deveriam causar incômodo – soam artificiais, quase cartunescas.

O roteiro, assinado por JT Mollner (“Desconhecidos”) opta por simplificar tudo o que, no livro, era sugestivo, introspectivo e muitas vezes ambíguo. Personagens como McVries (David Jonsson)e Stebbins (Garrett Wareing), que carregavam complexidades, contradições e nuances importantes na obra original, são reduzidos a funções dramáticas básicas. Em especial, a relação ambígua e psicológica entre McVries e o protagonista Ray Garraty (Cooper Hoffman) é completamente esvaziada, perdendo toda a tensão emocional e até os subtextos homoeróticos sutis que compunham uma das dinâmicas mais interessantes da história. A decisão de transformar Barkovitch (Charlie Plummer) em um vilão unidimensional é outro sintoma dessa necessidade de mastigar tudo para o público, sem confiar em sua capacidade de interpretar camadas.

E esse é talvez o maior problema do longa, essa falta de confiança no espectador. Tudo é dito, explicado, justificado. As motivações dos personagens são jogadas em diálogos expositivos, como se ninguém tivesse tempo para desenvolver um arco narrativo. A crítica social – que poderia estar ligada ao espetáculo da violência, à banalização da morte, ao uso político da juventude – é abafada por escolhas fáceis e genéricas. A ideia de um governo autoritário que promove uma marcha até a morte como forma de controle social poderia render discussões filosóficas e políticas, mas aqui serve apenas de pano de fundo para um desfile de mortes episódicas, sem que haja qualquer consequência maior.
O final, então, escancara a fragilidade narrativa. A decisão de alterar o desfecho do livro, já controverso por sua ambiguidade, não seria um problema em si. Afinal, adaptações precisam dialogar com linguagens diferentes, mas a mudança aqui soa gratuita, sem coerência interna, e ainda elimina a chance de o filme deixar alguma marca. O clímax, em vez de ser o momento de maior tensão emocional, parece uma última tentativa desesperada de causar impacto com uma reviravolta que não foi construída ao longo do filme. David Jonsson, até tenta trazer algum peso ao personagem, mas é sabotado por um roteiro que o transforma em mero símbolo.
No entanto, mesmo ele, assim como outros coadjuvantes, acaba se perdendo diante da falta de direção dramática. Não há espaço para respiros, para olhares, para pausas que revelem algo além do óbvio. Tudo se move rápido demais – e, ironicamente, sem sair do lugar.
É inevitável, ao assistir A Longa Marcha: Caminhe ou Morra, não lembrar de outras adaptações de King. O histórico é repleto de acertos e tropeços, mas os melhores exemplos — como “O Iluminado”, “Carrie” ou “Louca Obsessão” – compartilham algo em comum: a coragem de reinventar. Francis Lawrence, por outro lado, parece preso à obrigação de seguir o texto original como uma receita, mas sem entender os ingredientes que o tornavam especial. O resultado é um filme que corre, corre, mas nunca chega a lugar algum.
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