A julgar pela trajetória de Anna Muylaert no cinema, especialmente em obras como “Que Horas Ela Volta?”, era de se esperar que A Melhor Mãe do Mundo abordasse os entrelaçamentos de classe, raça e gênero com a mesma precisão narrativa e política já demonstrada antes. No entanto, o que se apresenta na tela é um exercício de tentativa frustrada de empatia, onde a diretora, que não compartilha da vivência retratada, parece mais interessada em simular compreensão do que em realmente escutar e representar. O resultado é um filme que, embora parta de uma pauta urgente – a violência doméstica contra mulheres negras periféricas –, não consegue fugir da superfície e, pior, se rende ao espetáculo emocional barato.
Desde os primeiros minutos, o longa se constrói a partir de uma estética de denúncia que mira o impacto imediato, mas sem a sustentação necessária para fazê-lo de forma ética ou criativa. Gal, interpretada pela exceçente por Shirley Cruz, é apresentada como uma mãe que foge de casa com os filhos após ser agredida. A premissa tem potência, mas a encenação da dor é moldada a partir de um olhar distante, que não vem de dentro da vivência, mas sim de fora – e de cima. O que poderia ser um retrato honesto torna-se uma espécie de teatro da miséria estilizado, embalado por imagens que mais servem para emocionar pela via fácil do sofrimento do que para provocar reflexão real.

Um dos momentos que melhor exemplifica essa postura é a sequência em que Gal, sem ter onde dormir com os filhos, transforma a situação em um “camping” urbano. A tentativa de transformar a privação em brincadeira, de suavizar a tragédia com doçura, ecoa diretamente estratégias narrativas de filmes como “A Vida é Bela” ou “À Procura da Felicidade”, onde o drama real é embrulhado numa fantasia artificial para consumo confortável. O que deveria ser um gesto de ternura se converte em uma encenação forçada, quase constrangedora, que evidencia o abismo entre quem dirige e quem é retratado. Não há poesia ali, é apenas uma encenação de quem nunca precisou dormir na rua com medo da polícia ou da fome.
O roteiro também assinado por Muylaert, por sua vez, não colabora. Recheado de diálogos explicativos e frases que tentam traduzir sentimentos já evidentes nas imagens, ele entrega o que há de mais óbvio e subestima a inteligência do público. Ao invés de confiar na força visual ou na complexidade emocional dos personagens, o texto insiste em dizer o que já foi mostrado, e, ao fazer isso, esvazia a experiência. Não bastasse a fragilidade estrutural, o filme ainda tropeça na construção de figuras-chave: Leandro, vivido por Seu Jorge, é uma caricatura rasa do homem abusivo. Sua violência não é construída em camadas, tampouco apresenta nuances – ele é violento porque o roteiro exige, e não porque o personagem tenha sido minimamente trabalhado. O mais perigoso disso tudo é que ele se parasse com a versão do imaginário popular do que é um homem negro raivoso.

Se há alguma salvação no longa, ela vem da direção de atores e da entrega do elenco infantil. As crianças, Rihanna (Rihanna Barbosa) e João Victor (Benin Ayo), mesmo diante de um roteiro que não as compreende como indivíduos complexos, conseguem imprimir verdade nas cenas. Em alguns momentos – poucos, mas reais –, a convivência entre os três personagens principais cria respiros autênticos, como quando dividem o silêncio ou trocam olhares cúmplices. É nesses instantes que o filme parece enfim encontrar algum grau de humanidade, mas isso nunca se sustenta. A montagem, muitas vezes desorganizada, não ajuda a manter o ritmo, e a cada tentativa de pausa emocional, há uma pressa em retomar o tom didático, como se o filme nunca conseguisse se decidir entre ser arte ou panfleto.
A fotografia, ainda que tecnicamente bem realizada, não escapa da intenção de estetizar o sofrimento. São enquadramentos belos demais para uma história que exigiria outra abordagem, afinal as imagens também comunican. A cidade de São Paulo aparece quase como uma pintura expressionista, repleta de contrastes calculados, como se a pobreza fosse um elemento cênico e não uma condição social. O carrinho de recicláveis, que poderia ser símbolo de resistência e reinvenção, é tratado com um simbolismo tão óbvio que perde força logo nas primeiras aparições. Ao final, ele se torna mais um ornamento de metáfora vazia do que extensão do corpo exausto de Gal.

É impossível ignorar que o filme flerta o tempo todo com uma lógica publicitária: trilhas que tentam emocionar de maneira mecânica, frases prontas com potencial de hashtag, e uma vontade incessante de provocar lágrimas fáceis. Há momentos que soam como comerciais de ONGs ou campanhas institucionais mal planejadas, em que o drama vira produto e a dor é reciclada como conteúdo tocante. A Melhor Mãe do Mundo quer muito ser um grito, mas soa como um eco plastificado da dor alheia, embalado por alguém que nunca a sentiu de fato, mas a consome como tema de roteiro.
Na tentativa de dialogar com uma realidade que historicamente é silenciada, o filme cai na armadilha do reducionismo. Não há elaboração crítica verdadeira, não há enfrentamento real das estruturas que produzem a violência contra mulheres negras e pobres. O que há é um desfile de cenas previsíveis, cuja previsibilidade se torna incômoda não por serem familiares, mas por serem conduzidas com tamanha obviedade que resta pouco espaço para o espectador pensar. O título, tão grandioso quanto sua proposta, termina por pesar sobre a narrativa que não consegue sustentá-lo.
Ao longo de sua duração, o filme vai revelando o que esconde sob a superfície: uma visão simplista, uma estrutura frágil e uma direção que parece mais interessada em construir momentos tocantes do que uma história coerente. As soluções visuais são, muitas vezes, incompatíveis com a crueza que a história exigia. E o desfecho, longe de amarrar os fios narrativos ou emocionar, entrega um clímax forçado, emocionalmente manipulador, que mais envergonha do que comove. Fica evidente, ali, o esforço de quem quer muito dizer algo importante, mas não sabe bem como – ou para quem.
Leia outras críticas:
Deixe uma resposta